Estava previsto que Lanta Old Town fosse um poiso mais prolongado no primeiro mês de viagem. Um breve intervalo onde fizesse sentido despejar completamente as mochilas e arrumar todas as coisas em armários e prateleiras. Faríamos uma curta pausa no nomadismo a que voluntariamente nos dedicamos para conhecer melhor um povo, uma cultura, um estilo de vida, mas também (ou seria principalmente?) para relaxar e matar saudades do nosso quotidiano, tendo oportunidade, por exemplo, de estar atrás de um fogão e mimar o palato com sabores conhecidos. E assim foi.
Alugámos uma casa de madeira com mais de 70 anos, importante entreposto comercial em tempos idos e onde os chineses se estabeleceram para vender (legalmente) ópio aos navegadores mercantes e habitantes locais. Imaginámo-nos relaxados na varanda, deitados numa cama de rede a contemplar o mar, perscrutando as águas à procura de peixinhos mesmo por baixo dos nossos pés. Era a tal “casinha sobre a água” que a Pikitim tanto ansiava, mesmo em cima do oceano, de madeira e construída sobre estacas. E a realidade não desiludiu. A casa de madeira acusava a idade, é inegável. As largas tábuas no chão tinham muitas falhas entre si (o que, verdade seja dita, até dava jeito para varrer a casa directamente para o mar!) e o telhado assentava toscamente sobre as paredes, com uma distância suficientemente grande para permitir a entrada de um morcego curioso, mesmo tendo todas as portas e janelas bem fechadas. Mas a velhice adicionava-lhe beleza, muito por culpa da arquitectura e estilo de construção e, sobretudo, da localização sobre a água que fizeram com que, sem esforço, nos sentíssemos verdadeiramente aconchegados. Em casa, portanto. Mas sobre a água.

A Pikitim não poderia pedir mais. Impressionou-se especialmente ao sentir a voracidade do oceano debaixo da palafita. O ruidoso marulhar na enchente da maré. Duas vezes por dia, ao sabor da terra e da lua. Tudo muito rápido. Ao pequeno-almoço, avistava-se o mar lá ao fundo e os barcos dos pescadores repousavam em lama; de repente, entre uma dentada na torrada e um trago de leite, a lama já era água e a sua subida ouvia-se de tal maneira que, por vezes, se confundia com chuva. Quando um dia a Pikitim estudar os fenómenos das marés nos bancos da escola, não deixará com certeza de se lembrar da experiência vivida na sua “casinha sobre a água”.
Após alguns dias mais rotineiros que o habitual (e como souberem bem, esses dias!), com idas ao supermercado e aos correios, cumprimentos aos vizinhos e brincadeiras no parque infantil da aldeia ao final da tarde, alugámos uma mota para dar a volta à ilha, espreitar as famosas praias de Koh Lanta e a diversidade dos seus habitantes – dos tailandeses muçulmanos aos chineses budistas, e ainda os chamados “ciganos do mar”, animistas. Para a Pikitim, a emoção do passeio de mota residiu mais na aventura de ir “na mota à frente do pai” a fingir que conduzia enquanto se empenhava em segurar um capacete demasiado largo para a sua cabeça de menina, do que nas praias como a de Klong Dao ou nas aldeias da ilha, como Ban Sun-Ga-U.

Foi onde rumámos primeiro, no extremo sul da ilha, onde pouco mais existe que aglomerados de pescadores e uma aldeia com pequenas casas e barracas de madeira onde vive um clã Chow Leh – os tais “ciganos do mar”, povo nómada originário da Malásia que outrora vivia navegando livremente por todo o mar Andaman e estão, agora confinados a aldeias como Ban Sun-Ga-U.
Sabíamos de antemão que muitos se mantêm fieis às suas tradições de pesca e compreensivelmente têm alguma relutância a contactos com estrangeiros. A nossa passagem por Ban Sun-Ga-U foi, por isso mesmo, rápida. A aldeia estava deserta de homens (estariam na pesca?) e, à porta de uma cabana com ar de mercearia, quatro mulheres e uma bebé aproveitavam a frescura de uma sombra para cavaquear. Surpreendentemente, as mulheres agradaram-se com a Pikitim e tentaram que ela interagisse com a bebé, como se pretendessem que ela brincasse com uma “boneca” de verdade. A Pikitim só sorria, e reparou que a bebé tinha muitas pulseiras no tornozelo. Quando chegou a casa, uma das primeiras coisas que fez (e repetiu nos dias seguintes) foi pôr os elásticos do cabelo no seu tornozelo, numa espécie de aculturação e homenagem à tradição que havia visto.

De regresso às subidas e descidas da estrada (“Ena, esta estrada parece mesmo a pista de carros do Diogo, mãe… sabes, aquela do faísca McQueen?”, disse a Pikitim), fomos atravessando largas extensões de “árvores da borracha”. É um das actividades económicas com alguma importância na região. A primeira vez que a Pikitim reparou nos copinhos espetados nos troncos das seringueiras tinha sido em Koh Jum e, na altura, o seu interesse na árvore levou o motorista do tuk-tuk a parar para que a Pikitim lhe arrancasse um pequeno pedaço de látex: “Parece elástico, mãe!”, notou, espantada.
Aproveitamos a deixa para lhe explicar que era com pedacinhos como aquele que se obtém a borracha natural com que se fazem muitas coisas que usamos em casa, incluindo brinquedos. “Como as minhas bonecas?”, perguntou. Sim, Pikitim, como algumas das tuas bonecas.

A partir daí, a Pikitim passou a reparar em todas as “árvores com copinhos”. E, atravessando uma plantação na ilha de Lanta, notou também numa espécie de “máquina de costura”, um artefacto onde se pressiona o látex recolhido nos copinhos com um ácido coagulante até aparecerem placas finas desta goma elástica a que se chama caoutchouc, que depois são postas a secar.
Tínhamos dessas placas extraídas de forma natural à porta de casa, em Lanta Old Town, exalando constantemente um odor adocicado e enjoativo. Um dia, ao passar por elas, a Pikitim voltou ao assunto: “Se calhar, mãe, estas coisas vão para uma fábrica ser transformadas em roupas para as minhas Polly Pocket”.
e que mal cheira essa borracha…bem pior que durian…hehehe!!
“…o que, verdade seja dita, até dava jeito para varrer a casa directamente para o mar!…” Acho que vou mudar de casa :))))