É um dos lugares mais visitados de toda a Indonésia, e o interesse por Borobudur está plenamente justificado. É o maior monumento budista de toda a Ásia, no maior país muçulmano do planeta. Mas o mais surpreendente acaba mesmo por ser a arquitectura de Candi Borobudur, uma gigantesca stupa localizada num local incrivelmente fértil, entre dois vulcões e dois rios. Com Angkor Wat, no Camboja, e os templos de Bagan, em Myanmar, o monumento de Borobudur completa a trilogia dos mais espectaculares monumentos do sudeste asiático.
Calhou de visitarmos Borobudur numa altura em que decorria uma convenção anual que juntava cerca de duzentos budistas de todo o mundo. A coincidência acabou por se revelar vantajosa, apesar de um percalço inicial: o alojamento que havíamos marcado com meses de antecedência estava, afinal, fruto de um engano, sobrelotado. Para resolver o overbooking, acabamos alojados numa casa longe da vila, no coração de Jowahan, uma das muitas aldeias que circundam o monumento de Borobudur. E ainda bem que assim foi.

Fomos recebidos por Dewi, funcionária e vizinha da casa Omahe Simbok (que em bahasa quer dizer “casa da mãe”), de braços abertos e inglês muito curto. Os adultos tiveram mais dificuldades em comunicar entre si do que a Pikitim e os dois filhos de Dewi, os pequenos Latif, de 4 anos, e Najwa, de dois anos e meio. E assim passámos a comunicar por gestos, e, mesmo assim, nem sempre com sucesso.
Num ápice, a Pikitim e o pequeno Latif tornaram-se inseparáveis, e as brincadeiras que então faziam eram tão simples quanto enternecedoras. Durante um par de dias, correr atrás das galinhas à solta foi o passatempo preferido, mas esticar o braço com ramos de árvores para alimentar as cabras ou apanhar os paus da rua para fazer desenhos na estrada de terra batida também tinham muito sucesso na Pikitim-versão-criança-de-aldeia. Era com as mais simples das brincadeiras que eles melhor se entendiam. E isso deixava-nos naturalmente felizes.

Num fim de tarde, após ter estado na casa (quatro paredes de tijolo com um telhado e nenhum mobiliário) dos seus novos amigos a brincar, a Pikitim disse que tinha visto Najwa a tomar banho e que a casa de banho era “engraçada”, porque “não tem porta, só tem um quadrado no chão”, e porque “a água não está na torneira, mas num rio que passa ao lado”. E concluiu, numa sinceridade desarmante: “Aquela água deve estar fria, mas a Najwa não faz fitas, como eu, quando não há agua quente”. Foi mais um contacto com miúdos bem menos afortunado do que ela – e felizmente ela notou.
Na verdade, toda a estadia em Borobudur foi uma espécie de viagem no tempo. Os passeios pelas aldeias eram feitos de bicicleta ou em carroças puxadas por cavalos. E as próprias aldeias pareciam estar organizadas como os antigos bairros de operários medievais: os artesãos de cerâmica de um lado, na aldeia de Nglipoh, os produtores de tofu de outro, em Tanjung Sari, os que fazem noodles de arroz numa aldeia diante. A Pikitim viu com toda a atenção a forma como um artesão culinário de aspecto franzino e sorridente fazia mais de 70 kg de tofu por dia, de tal modo que passou os dias seguintes a desenhar complexas “máquinas de fazer esparguete, pão e pizzas” saídas da sua fértil imaginação. E adorou pôr as mãos no barro, quando foi desafiada a fazer algumas peças de artesanato improvisado: um taça e uma stupa em miniatura. “Parece mais fácil do que é, mãe, mas na verdade eu até tenho mais jeito do que tu”, dizia ela, não sem ponta de verdade.

Foram dias de descoberta e de desfrute, com inúmeros passeios a pé, de carroça ou bicicleta envoltos numa paisagem muito apreciada pelos pais: os arrozais. Talvez por nos ouvir falar tanto nisso, a Pikitim parece que começa a notar também este tipo de beleza. “Os arrozais são mesmo bonitos, não são?”, dizia, fosse com sinceridade ou apenas para agradar.
Com tantas brincadeiras, actividades e passeios, e também para evitar as enchentes de fim de semana agravadas pela convenção de budistas, acabámos por visitar o monumento classificado como Património Mundial apenas no último dia da nossa estadia na vila. E quis o acaso que visitássemos Borobudur numa altura em que havia dezenas de budistas em oração, adensando o clima de espanto e espiritualidade que, inevitavelmente, ali se sente.

A Pikitim olhava-os, boquiaberta, acompanhando visualmente a peregrinação circular que iam fazendo monumento acima, enquanto entoavam cânticos ou rezavam. “O que é que estão a dizer?”, perguntava. E tínhamos de responder que não fazíamos a mínima ideia, mas que deviam estar a rezar, isto é, a “conversar com Deus” (como é que se explica isto a uma criança de cinco anos?).
Ao fim de quase três meses de viagem, a diversidade de religiões e culturas que têm desfilado perante a Pikitim continuam a ser encaradas com naturalidade, sem que ela chegue a perceber o que é o céu, o paraíso ou o nirvana. Diz que os muçulmanos “tapam a cabeça”, que as hindus trazem “pintas na testa” e nos templos têm “pessoas com três cabeças e quatro braços” (numa alusão às figuras de Brahma, Shiva e Vishnu), e que os budistas andam com “lençóis amarrados ao corpo” e fazem “ruínas com estátuas de senhores sentados”. É delicioso!

Esta simplicidade infantil permite-lhe reduzir a um simples conto os fantásticos e intricados relevos que preenchem os pisos inferiores da stupa. “É a história da rainha Maia, que queria muito ter filhos, mas não conseguia; até que um dia sonhou que tinha um elefante branco na barriga, e depois estava grávida mesmo”, resumia ela ao pai a história que acabara de ouvir, minutos antes, pela boca de estudantes feitos guias turísticos voluntários para praticar o inglês. “Tu estavas a tirar fotografias e não ouviste. Mas aqui é a rainha Maia a ir a casa da sua mãe para ter o bebé, e ali [o relevo seguinte] é o bebé a nascer no meio do caminho”, concluiu, entusiasmada. O bebé era a figura de Siddharta, que muitos acreditam ter conseguido atingir o Nirvana.
Era uma delicia ver a Pikitim interessada nos baixos-relevos, a querer subir a stupa até ao topo, a desfrutar plenamente do magnífico monumento de Borobudur, antes de voltar ao seu pequeno paraíso terrestre, rodeada de terra, galinhas e cabras na companhia de Latif e Najwa. “Nirvana? Não percebo nada disso”.
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