Chegámos a Bali sem saber que daí a pouco nos esperavam vinte e quatro horas de silêncio total. Era segunda-feira de uma semana muito especial, na mais espiritual das ilhas indonésias. Estávamos, por feliz ou infeliz acaso, a poucos dias do Niepy Day, o Dia do Silêncio, e com ele as cerimónias dos Ogoh-Ogoh.
Aos poucos, fomos percebendo a forma fervorosa e rígida como o dia seria levado: portos e aeroportos são encerrados, e até as estradas são vedadas à circulação; escolas, repartições públicas, lojas, supermercados, restaurantes, tudo, mesmo tudo é encerrado. E ninguém anda na rua. É como se, durante 24 horas, Bali se transformasse subitamente numa ilha fantasma, onde não mora ninguém. “É para os maus espíritos que nos sobrevoam seguirem directos para Java e deixarem a ilha de Bali em paz”, explicava Sri, a simpática funcionária da guesthouse onde primeiramente nos alojámos, em tom de brincadeira. No fundo, é exactamente isso que os balineses pensam.
Bali é uma ilha profundamente espiritual. No miniautocarro que nos levou do porto de Gilimanuk até Denpasar, logo no primeiro dia à ilha, após atravessado o estreito de Bali vindo de Java, vimos o motorista parar num santuário, aos primeiros quilómetros da viagem, onde uma mulher lhe molhou a cara e colou na testa uns grãos de arroz, e colocou um pau de incenso no carro. Para ter sorte no caminho. Logo a seguir, na bemo (uma espécie de táxi colectivo) que nos levou até Ubud, o tablier estava transformado num altar. E havia flores e arroz junto a uma pequena ganesha, uma das divindades hindus que, entre outras crenças, representa o intelecto e a sabedoria que permite a destruição de obstáculos.
Bali é assim. Oferendas, cerimónias, procissões, flores, arroz e fruta e incenso aparecem e desaparecem ao virar de cada esquina. Nas grandes cidades e nas pequenas aldeias – em todo o lado. Nada parece ser mais importante para um balinês que o seu calendário de cerimónias – preparar o aniversário do templo da aldeia e assistir às cerimónias, participar no funeral de alguém da aldeia, celebrar a lua nova ou a lua cheia, o quinto ou o sexto mês de um filho, um aniversário, enfim, as datas são imensas. E o exponente máximo, a mãe de todas as celebrações, chama-se Niepy Day. É a entrada no novo ano, um dia silencioso para reflectir no que aconteceu de bom e expiar o que de mau se viveu no ano velho.
Fomos avisados para nos prepararmos para o Dia do Silêncio. E que devíamos comprar tudo o que precisássemos – água, bolachas, carne, leite, massas, fruta, livros, tudo – com dois dias de antecedência, antes que houvesse uma corrida às prateleiras dos supermercados e que os desfiles dos Ogoh-Ogoh tornassem as ruas intransitáveis. “Ogoh-Ogoh? O que é isso?”, apressou-se a perguntar a Pikitim. “Os Ogoh-Ogoh são uma encarnação dos espíritos maus, são como nós os imaginamos. Antes do Dia do Silêncio vamos acordá-los e mandá-los daqui para fora”, explicou Ketut enquanto nos deixava à porta de uma casa alugada na aldeia de Penestanan, onde iríamos passar esse estranho dia, com uma lanterna e o aviso de que não deveríamos acender as luzes de fora (onde estava a cozinha, a sala… a piscina) para respeitarmos o mais possível tradição balinesa. E não poderíamos sair de casa. Mesmo.
O desfile dos Ogoh-Ogoh foi, para a Pikitim, algo de “verdadeiramente espectacular” (as palavra são dela). “São monstros muito grandes, que os meninos levam às costas e andam a passear pela cidade e a fazer uóóóóó-uóóóóóóó!”, contou, entusiasmada, antes de se deter num pequeno pormenor: “Mas o mais divertido é vê-los a desviarem-se dos fios das electricidade”, resumiu.
Ora, se apreciados à luz do dia os monstros são, de facto, impressionantes, vistos à noite são ainda mais fascinantes. No fim dos desfiles, boa parte dos Ogoh-Ogoh são queimados, com todos os espíritos maus a serem levados pelo fogo. “Mas a fogueira nós já não vimos”, relatava a Pikitim, dias depois, a sua noite de Ogoh-Ogoh. Até porque, felizmente, muitos desses monstros de bambu, papel maché e cartão são tais obras-primas que os seus autores, não raras vezes, recusam a queimar o trabalho de um mês ao fim de um par de horas; “ficam em exposição durante uns tempos”, acrescentou Ketut.
Foi depois dos desfiles dos Ogoh-Ogoh que a ilha mergulhou num silêncio sepulcral. Após as seis da madrugada, e durante 24 horas, as pessoas recolhem-se religiosamente em suas casas, as luzes apagam-se, as estradas ficam desertas, não se ouve uma voz, uma mota, nada. Para nós, era um dia absolutamente estranho. Andávamos como que em câmara lenta, quase com medo de falar, de espirrar, de fazer qualquer barulho que desrespeitasse a tradição. Não queríamos, de todo, desconsiderar a devota vizinhança. Vezes sem conta chamámos a atenção da Pikitim para fazer pouco barulho (mas como vai uma criança perceber uma tal imposição sem razão aparente?).
“Mas porque é que eu não posso falar alto?”, reclamava. “Mas porque é que vocês não vêm para a piscina hoje”, desesperava. “Mas porque é que a luz está tão fraquinha?”, estranhava (sim, a potência eléctrica desce para níveis intermitentes, quase nulos, ao ponto de estragar tudo o que estava armazenado no frigorífico). “Mas porque é que todos hoje têm de estar parados e a pensar?”, questionava, já de noite, antes de concluir: “Eu não quero pensar mais hoje”.
Nos folhetos turísticos balineses pergunta-se, provocatoriamente, se não seria maravilhoso que o mundo inteiro parasse por um dia e fizesse uma reflexão profunda no que de bom e mau aconteceu no ano que termina. A Pikitim discorda.
Como seria de esperar, a miúda achou o Dia do Silêncio tudo menos interessante, apesar de não ter sido tão mau quanto o esperado: “afinal até está a ser um dia feliz, pensei que tínhamos de passar o dia todo sem um pio, e isso ia ser muito triste”, desabafou antes de dormir. Quando, dias mais tarde, a avó lhe perguntou como ela tinha passado aquele dia tão diferente, a resposta saiu pronta: “Como é que havia de ser? A fazer pouco barulho, para os senhores que moram nesta ilha pensarem que eu também estava a pensar. Mas foi só isso, que eu não pensei mesmo em nada”.
Marta diz
🙂 Continuo a viajar convosco. obrigada
sandra diz
Dia bastante interessante 🙂