Depois de nos termos deslumbrado com a região dos fiordes neozelandeses, era hora de atravessar a cordilheira dos Alpes do sul e subir a costa oeste da ilha sul da Nova Zelândia. Os locais brincam com o nome do distrito – dizem que em vez de westland, “terra do oeste”, se deveria chamar wetland, “terra molhada”, tal a quantidade de precipitação que ali cai. Não era, evidentemente, a chuva que procurávamos, mas sim as enormes massas de gelo. Em movimento. Porque é aí que, num espaço geográfico curtíssimo, perto do mar e embrenhado num clima tropical, se encontram dois glaciares absolutamente fascinantes, de seu nome Fox e Franz Joseph. Dirigimo-nos para lá.
Atravessámos os Alpes na chamada passagem de Haast, através de uma estrada de montanha tão sinuosa quanto cénica. Ao início, paisagens verdejantes; depois, cascatas por todo o lado. E, de repente, no final de uma curva, tínhamos todo um oceano à nossa frente. Um mar de Inverno, revolto em vez de Pacífico, e uma praia repleta de sinais de tempestade, com centenas de troncos negros espalhados pelo areal de forma apocalíptica. Tudo era cinza, preto, quase assustador. E simultaneamente belo. Parecia o cenário de um filme de acção e aventura, no exacto momento em que algo tenebroso está para acontecer e o suspense prende a nossa respiração.
Mas aquele mar revolto foi um belo prenúncio do que as forças da Natureza continuam a desenhar, diariamente, em toda a Nova Zelândia, nomeadamente na formação de glaciares tão belos como Fox e Franz Joseph. Tecnicamente, um glaciar é algo sempre em mudança – ora recua ora avança -, e quase todos estão ameaçados pelo aquecimento global do planeta. Mas poucos serão tão dinâmicos quanto os da westland.
Os ventos vindos do oceano esbarram na cordilheira dos Alpes do Sul e dão aos glaciares a água de que necessitam para continuarem a existir: a chuva transforma-se em neve pelas elevadas altitudes e a neve acumulada transforma-se no gelo que vai alimentando os glaciares. É muita informação técnica para a Pikitim, apesar da atenção com que ela nos ouviu, e parecia querer perceber das placas de informação que se habituou a tentar interpretar. Sintetizou desta forma: “lá em cima está tanto frio, que a água da chuva não se transforma em neve, mas em gelo”. Mas, logo depois, começou a duvidar da sua própria explicação. “Não está assim tanto frio, eu até nem preciso de casaco. Não percebo como não derrete!”, afirmou, espantada.
O primeiro que visitámos foi o glaciar Fox. E o que a Pikitim viu foi um verdadeiro “rio de gelo” – não há melhor forma de se referir a um tal caudal de água, que parece querer descer montanha abaixo mas acaba congelado a meio, como num instantâneo fotográfico. Caminhamos entusiasmados pelo que seria um leito de cheia se estivéssemos a falar de um “rio normal” e se a água que víamos a “descongelar” não fosse um “fiozinho” aparentemente inofensivo. Na verdade, as aparências iludem e não há nada de inofensivo na paisagem glaciar. Todos os dias, o Departamento de Conservação marca novos limites para manter os visitantes em segurança. Foi por isso, em virtude de uma tempestade nocturna que aumentou o caudal de um riacho circundante, que nesse dia ficamos a mais de 600 metros da cabeça do glaciar, quase dez vezes mais longe do que o costume.
Haveria de ser um pouco mais a norte, no afamado Franz Joseph, que a Pikitim iria conseguir estar bem perto da cabeça de um glaciar. Seguimos pelo trilho Sentinel Rock. O percurso começava numa pequena floresta onde outrora estava o glaciar, entretanto recuado várias centenas de metros, e continuava por um “oceano de entulho” deixado pelo degelo, ladeado por vistosas cascatas. O sol apareceu, o branco ficou mais branco, e o rio de gelo brilhou por breves instantes, antes que as brumas e a chuva tomassem conta de todo o vale de Franz Joseph. Foi a melhor vista que a Pikitim conseguiu da cabeça de um glaciar, depois do azar meteorológico no glaciar Fox.
A vigilância do Departamento de Conservação, embora tranquilizantes, parece por vezes demasiado conservadora. Foi o que pensámos ao ser impedidos de realizar o trilho completo à volta do lago Matheson, nas proximidades da aldeia de Fox, por causa de uma árvore de grande porte caída numa das suas margens. Tal facto “obrigou-nos” a visitar Matheson mais do que uma vez – um belo pretexto para voltar a um local que tem a arrebatadora capacidade de reflectir a cadeia montanhosa com tal beleza que são suas muitas das mais conhecidas fotografias neozelandesas, correndo mundo em incontáveis postais, ou suportes como caixas de bolachas e tabletes de chocolate.
Ao longo da caminhada circundando o lago Matheson, as árvores altas e frondosas foram o pretexto para a Pikitim recontar a história da Pocahontas, que conseguiu subir uma árvore “parecida com as do lago, mas diferentes porque tinham mais ramos”. Enquanto contava a história da índia, do príncipe João e da senhora Jenkins, a Pikitim reparou nos “cabelos” que caíam de uma espécie de palmeira e decidiu prontamente que era “uma árvore-menina”. A partir daí, começou a reparar nas árvores, decidindo se eram “meninas”, “bebés” ou até – qual filme da Disney – se viviam uma história de amor: “Não posso acreditar, estas árvores estão a dar as mãos… devem estar apaixonadas”.
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