Tinha sido uma longa jornada de carro a atravessar numa paisagem quase surreal, a das montanhas esventradas pela actividade de extracção do níquel, onde a terra tem cores ocre e laranja e a estrada serpenteia ao longo de intermináveis quilómetros sem carros à vista, entre Kouaoua e Canala. Estávamos na costa leste da Grande Terre, a principal ilha da Nova Caledónia, e tínhamos como destino a pequena vila de Thio. De permeio, tínhamos ainda sido obrigados a um compasso de espera na “estrada com horários de Petchécara” – um troço de 13 quilómetros tão estreito e íngreme que há horas destinadas ao trânsito em cada um dos sentidos. Esperámos quase uma hora, para que chegassem as quatro da tarde e pudéssemos avançar, e assim chegamos ao parque de campismo de Ouroué uns quilómetros antes de Thio, já ao fim da tarde. O cansaço já pesava. Mas não o suficiente para que o entusiasmo e a ansiedade da Pikitim viver a verdadeira aventura de acampar esmorecesse.
Desde que lhe disséramos que iríamos fazer uma fogueira para podermos cozinhar que a Pikitim não pensava noutra coisa senão na missão que lhe tinha sido incumbida: ajudar a encontrar lenha. O céu ameaçava chuva e, com o parque deserto de clientes e donos, estávamos por nossa conta. A Pikitim não nos quis ajudar a montar a tenda, nem a estender colchões e sacos-cama. Tratou de arranjou paus para a fogueira, verificando, nem sempre com sucesso, se estavam suficientemente secos (uma tarefa difícil, depois de uma tarde de chuva), e não arredou pé da fogueira que o pai estoicamente tentou fazer sem acendalhas.
Fogueira acesa, a maior das emoções. E o arroz que lá cozinhámos estava “ainda mais saboroso do que o costume”. A Piktim estava delirante. Estávamos de lanternas à cabeça, a ouvir as ondas e a apreciar um luar tímido, saboreando arroz de cenoura e salsichas de Toulouse, algo barato e fácil de encontrar nos supermercados locais. “A partir de agora, vamos sempre comer na fogueira, pode ser pai?”, pediu. O campismo tinha de continuar – e seria em îles de Pins!
Planeámos passar boa parte da semana seguinte na misteriosa Île des Pins, apontando para lá todas as nossas expectativas relativamente ao usufruto da diversidade natural e da beleza classificada como Património Mundial das lagoas da Nova Caledónia. A Île des Pins integra uma das seis zonas protegidas da lagoa que envolve a costa do território ultramarino francês, considerada em literatura diversa como a “maior lagoa do mundo”. Com os desejos da Pikitim no horizonte, preparamos a tenda e os mantimentos necessários para “cozinhar na fogueira todos os dias”. O isolamento da ilha torna-a ainda mais irresistível – e ou pescávamos peixe para pôr na grelha à noite, ou teríamos mesmo de levar a carne, latas de atum ou salsichas para fazer um apetitoso barbecue, porque não há supermercados em toda a ilha.
Montamos a tenda no Nataiwatch, um gîte (termo usado para designar o alojamento turístico local) localizado na bonita baía de Kanuméra, excelente base para conhecer as principais atracções da pequena ilha. A “ilha dos pinheiros”, como lhe chamou a Pikitim, é pequena em tamanho – 18 quilómetros de cumprimento por 12 de largura – mas enorme em termos de beleza natural. A começar pelos tais pinheiros que lhe dão nome e marcam de forma indelével a paisagem, tanto pela sua abundância como pela curiosa forma colunar. E, depois, pela água cristalina que beija não só as areias de Kanuméra mas de toda a ilha, como foi bem visível do ponto mais alto de Îles dês Pinsa ilha, o Pic N’ga, que atinge apenas os 263 metros.
Tendo uma festeira comunidade kanak como vizinhos, a estadia no Nataiwatch revelou-se prazenteira e animada. Passaram o fim-de-semana a cantar e a dançar – e a comer e a beber – e tinham sempre um simpático bonjour na ponta da língua para dispensar aos visitantes. Nós não tínhamos confiado na capacidade de pesca – até porque não dispúnhamos de material adequado nem a experiencia necessária – e, por isso, tínhamos levado para a ilha os mantimentos necessários para satisfazer os desejos da petiza.
A excepção à regra das refeições cozinhadas na fogueira do pai foi o almoço que encomendámos no Chez Regis, um restaurante existente ao lado da principal atracção da ilha – a “piscina natural”, na Baía de Oro, assim chamada pela grande concentração de corais e peixes coloridos ali aprisionados na maré baixa. Encomendamos uma bougna, o prato típico da Nova Caledónia, também ele cozinhado na fogueira, ao longo de duas pacientes horas, com o frango em coco e limão embrulhado em folhas de bananeira. Um petisco!
O passeio até à Baía de Oro foi um deleite. Na travessia para lá, as águas eram tão límpidas que avistámos três tartarugas a nadar sem a mínima dificuldade. Era só deixar fluir o olhar, ao sabor do mesmo vento que empurrava a “piroga” que nos transportava. “Funciona!”, exclamou a Pikitim, ao perceber que basta uma vela e algum vento para fazer o barco andar. “Então, só quando não há vento é que os senhores têm de remar ou ligar o motor”, notou, perspicaz. Chegar à piscina natural implica algum “exercício”, para além da travessia de “piroga”: um percurso pela selva de cerca de três quartos de hora (onde apareciam caranguejos gigantes para nos cumprimentar), e depois atravessar o braço de mar que ajuda a alimentar piscina natural. Mas é um exercício prazenteiro, pela beleza do local, quase intocado, apesar de ser uma das principais atracções turísticas da ilha.
De regresso ao Nataiwatch, não era necessário colocar o frontal na cabeça para conseguir ver o prato, nem comer sentados num tronco como fizéramos em Thio, porque tinha mesas e electricidade à disposição dos campistas. Mas a magia do marulhar das pequenas ondas continuava a mesma. Na última noite que passamos por lá deixamo-nos assaltar por alguma tristeza. “É uma pena termos de devolver a tenda ao Simmon e ao Sylvain. Em Portugal vamos fazer campismo mais vezes. Pode ser?”, pediu a insaciável Pikitim. Está prometido.
Deixe um comentário