É agora um clássico, em Manila, muito graças ao pioneirismo de Carlos Celdran. Fazer visitas pelo centro histórico guiados por quem conhece bem os cantos à cidade. As walking tours em Intramuros são muito populares entre os estrangeiros, porque permitem conhecer a história das Filipinas, relatada por quem assumidamente a devora e adora. Para nós, a novidade residiu em descobrir que também havia tours orientados para as crianças. Apesar da barreira da língua – o passeio seria conduzido em inglês – acreditámos que dali poderia sair algo proveitoso. Pelo menos, era uma nova experiência para a Pikitim.
À hora combinada, três da tarde, estávamos à porta do Forte Santiago, onde Jay Buenaflor, um guia caloroso, já nos aguardava. Iriam participar no passeio várias crianças, aparentemente de um colégio da cidade, acompanhadas por familiares e professores. “Sabiam que eu descobri que tenho sangue português? O nome da minha mãe é Barreto!”, disse Jay, entusiasmado, relatando ao grupo que era a primeira vez que tinha participantes portugueses a acompanhá-lo.
Havia algum aparato e teatralidade, com o notório objectivo de entusiasmar pequenos e graúdos, e algum humor inofensivo – “Mantenham-se perto de mim, as autoridades das Filipinas já me avisaram várias vezes que não posso perder mais turistas”; “quando quiserem urinar é só dizerem que eu tenho a solução: é que nas Filipinas fazer na rua não é contra a lei, é contra a parede!”) -, ao ponto da Pikitim, mesmo não percebendo o que ouvia, ter deixado cair a afirmação: “Este nosso amigo Jay é um bocadinho palhacito, não é?”
A Pikitim começava a gostar a aventura, apesar de uma timidez inicial que a levou a esconder-se várias vezes atrás das costas dos pais com um pedido, quando percebeu que Jay pretendia que os participantes encenassem pedaços da história do país: “Digam ao Jay que eu não quero dizer nada! Digam ao Jay que eu não quero fazer nada!”. O tema da viagem era “A história ganha vida”, e a estratégia de Jay era levar os miúdos a encarná-la.
Jay pediu a todos os participantes que assumissem um papel numa encenação improvisada sobre o episódio histórico de três padres, agora considerados mártires, que ajudaram os filipinos a ganhar consciência e força contra o império espanhol. A mãe da Pikitim ofereceu-se para ser um “militar preguiçoso”, que nada iria fazer para salvar os padres em apuros; o pai da Pikitim foi o escolhido para ser um desses padres, o padre Gomes – e a Pikitim foi a primeira a reparar na coincidência do apelido. Eu não tive de dizer nem fazer nada, mas o pai da Pikitim teve de se posicionar perante a menina que se ofereceu para ser membro do pelotão de fuzilamento, dizendo-lhe “eu perdoo-te” e fingindo que morria de seguida. Foi o momento alto da primeira parte do passeio.
A Pikitim ainda não sabe a relevância de um Luís de Camões ou um Fernando Pessoa na cultura portuguesa, mas depois desta viagem pela história filipina ficou a conhecer de cor a história de José Rizal, “um senhor muito inteligente, que escrevia livros”. Na primeira vez que entrou no relicário – tínhamos visitado no dia anterior a este passeio – tinha aprendido o significado da palavra prisioneiro, e mostrou-se incrédula que mandassem prender as pessoas que não tinham feito mal nenhum. Depois, já com Jay a contar toda a história, percebeu que, afinal, Rizal não só esteve preso como tinha sido condenado à morte, acusado de perjúrio e traição à pátria.
Jay insistia na mensagem que Rizal esteve na origem de uma revolução pacífica, argumentando que é na inteligência e no pensamento que reside a mais poderosa das forças. E que foi por ter estudado, por ter percebido que os filipinos não tinham os direitos que os espanhóis tinham na sua pátria (Rizal viajou pela Europa), que decidiu retratar, em dois livros, como a vida poderia ser diferente. “Perceberam como apenas um homem conseguiu mudar tanta coisa? Nunca pensem que sozinhos não podem mudar o mundo!”, exortava no final da visita ao Museu de Luz e Som, que estava incluída neste tour.
O museu está localizado também no interior de Intramuros mas obrigou a uma curta deslocação de jeepney, um dos mais populares meios de transporte em Manila. Concebido para contar as história das Filipinas através de figuras animadas, inseridas em cenários ora pintados ora a três dimensões, o museu transformou numa pequena aventura, com os participantes a percorrerem os distintos cenários que se iluminavam a propósito.
Foi um percurso longo mas, surpreendentemente, a criançada manteve uma inusitada atenção – até mesmo a Pikitim, que não percebia muito do que ali estava a ser dito. Ao longo de mais de uma hora, foi conhecendo os índios que viviam nas Filipinas, assistiu à chegada de Fernão de Magalhães (“um português!”, reparou a Pikitim, toda contente), “entrou” para um galeão e “viu” como os espanhóis se foram instalando no país, observou a construção de Intramuros, a colonização espanhola, a corrupção do clero, a ostentação da burguesia e a exploração dos filipinos. E as várias batalhas, a morte dos três padres, a forma como Rizal se foi apercebendo das injustiças e como decidiu denunciá-las, os livros que escreveu, enfim, um banho de história repleto de som e luz.
No final da visita, Jay pediu às crianças para fazerem um desenho sobre algo que tivessem visto durante a tarde. E foi impressionante verificar que a maioria desenhou a mesma cena: um espingarda apontada às costas de um homem, José Rizal, que caía. Jay admitiu que a cena da execução costuma ser a mais marcante para as crianças – e, na verdade, a Pikitim, que tinha desenhado um jeepney, também disse logo que era aquela imagem que queria ter desenhado. Quando chegou a casa – e nos dias seguintes -, a Pikitim andou a falar deste herói filipino e continuou a desenhar episódios da vida de Rizal com notável conhecimento sobre a personagem. E julgamos até que o mais importante, a mensagem transmitida pelo exemplo de Rizal, estará lá dentro a crescer: que é estudando (e viajando e conhecendo) que cada um de nós pode começar a mudar o mundo. Vamos a isso.
sandra diz
“estudando (e viajando e conhecendo) que cada um de nós pode começar a mudar o mundo.” – é que tenho alturas em fico sem palavras….