Indonésia. O nome acarretava uma enormíssima dose de expectativas, acumuladas em crescendo desde o dia da partida para esta volta ao mundo. É que, de acordo com os planos da viagem, a Pikitim estaria na Indonésia no dia do seu aniversário, e esse simples facto era suficiente para a palavra transmitir magia e excitação ao ser pronunciada. Muita e indisfarçável excitação.
Talvez por isso, a verdade é que, desde que chegou à Indonésia, a Pikitim parecia ter vontade de absorver tudo, de conhecer tudo. Mostrava-se entusiasmada pelas novidades que lhe traria este novo país. Queria fazer coisas, apesar de entrar num universo desconhecido. Sabia apenas que iria encontrar muitos “arrozais e búfalos”, sabia do seu aniversário e de uma posterior visita dos avós, e pouco mais. Desconhecia, por exemplo, que ao aterrarmos em Yogyakarta estávamos a chegar a uma cidade carregada de história, um lugar de palácios e sultões, matéria-prima ideal para ter muitas histórias para contar e inventar. “É uma espécie de rei”, foi a resposta simplificada à óbvia pergunta sobre a existência do sultão.
Começámos pelo kraton de Yogyakarta, o antigo palácio do sultão agora transformado em museu, bem no coração histórico de Yogy – como muitos carinhosamente lhe chamam -, onde chegámos de becak, um triciclo pedalado com esforço por um simpático senhor de alguma idade, para deleite da Pikitim.
Sentámo-nos no pavilhão principal do kraton a ouvir um concerto de gamelão que sonorizava uma peça de teatro de marionetes de enredo totalmente imperceptível. Cansada de nada perceber e de inventar personagens para as marionetas que desfilavam à sua frente (incluindo “um português”, porque tinha trajes vermelho e verde, e “uma princesa”, porque estava vestida de branco), a Pikitim indagou: “O sultão já não mora aqui? Eu posso conhecê-lo? Podemos ir a sua casa?”.
Na impossibilidade de concretizar tal desejo, deu-se por satisfeita com a autorização para explorar os vários pavilhões do palácio sozinha, nos quais entrava e saía para relatar as descobertas: “Aqui estão guardados as antigas roupas do sultão”; “aqui são quadros dele e da família”; “aqui são jóias”, “isto não sei o que é”… O frenesim só parou quando reparou que, por aquelas bandas, os homens “andam de saia” e “têm uns paus enfiados nas costas”. Referia-se aos trabalhadores do kraton, que envergavam o tradicional sarong e traziam facas embainhadas.
Mas a surpresa maior aconteceu à entrada do Tamansari, o “castelo de água” de Yogyakarta, idealizado por um arquitecto português, quando satisfizemos a curiosidade da Pikitim (“Onde é que diz ‘Portugal’?”) e apontamos para uma placa de pedra onde se agradecia o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian na reconstrução do complexo de piscinas, utilizado pelo sultão e sua família – 35 mulheres e 150 filhos – como casa de férias. Apesar de achar “fixe” ter tantos irmãos, a Pikitim ficou incrédula ao perceber que o sultão escolhia, lá de cima, com qual das suas mulheres iria tomar banho na sua piscina privada. “Não percebo como é que elas faziam para ser as escolhidas”, questionava-se, antevendo um precoce sentido de injustiça perante a unilateralidade da decisão. Ficou bem mais descansada quando soube que, nos dias de hoje, os sultões já não podem ter tantas mulheres.
A verdade é que, hoje em dia, longe de ser apenas a “cidade do sultão” ou uma cidade-museu, Yogyakarta é um lugar aprazível para conhecer e deambular, onde se conjuga uma salutar fusão entre passado e a modernidade. Sem rumo pré-estabelecido, deixámo-nos perder várias vezes por entre as labirínticas ruelas em torno do kraton, conduzidos pelas abertas na chuva que assinala a época e pelo instinto de viajantes. Para a Pikitim, tudo era uma maravilhosa descoberta.
Num atelier de batik, uma técnica de tingimento artesanal originária da ilha de Java em que é utilizada cera quente para “pintar” os motivos no tecido (apenas as partes sem cera ficam efectivamente tingidas), a Pikitim ficou fascinada a observar uma senhora que demonstrava a milenar técnica à porta de uma loja. Tal como nós, que a acompanhamos em vez de entrar, escolher e comprar tecidos, para desalento de um homem que “desinteressadamente” (cof! cof!) fez questão de nos levar até à loja.
Noutra ruela, num atelier de wayang kulits, marionetas feitas em couro utilizadas em teatros de sombras, apreciou com toda a atenção a minúcia com que um jovem martelava um grande prego para, num verdadeiro trabalho de filigrana, transformar uma velha pele de carneiro numa linda marionete. E não resistiu a aceitar o convite de tentar, ela própria, decorar uma dessas personagens, não parando enquanto não cobriu de cor-de-rosa todas as flores do seu vestido.
Adiante, seguimos o impulso aventureiro que nela começa a despontar (“vamos pai, vamos ver o que há ali!”) e fomos espreitar o que havia para lá de uma porta circular com ar de entrada num calabouço escuro e frio. Era, na verdade, uma simples passagem subterrânea, e havia música a ecoar naquele espaço com bela acústica. Na outra extremidade do túnel, uma banda amadora tocava ao pé da escadaria, qual banda rock a mostrar talento nas estações de metro das grandes cidades ocidentais. Para a Pikitim, que só se levantou das escadas quando os jovens músicos fizeram tenção de terminar, a curiosidade tinha sido recompensada.
Tal como quando decidiu acompanhar o pai num workshop culinário. “Pai, e tu vais cozinhar na cozinha do restaurante?”, perguntou, radiante. Essa possibilidade entusiasmou-a, talvez imaginando o pai de avental e chapéu branco na cabeça transformado em chef Rémy do Ratatui, ao ponto de querer participar no workshop. O dia começou bem, com uma ida ao mercado local para comprar víveres que permitissem cumprir a ementa do almoço – ayan goreng kalasan e sambal goreng sayur. A visita ao mercado, pejada de novos cheiros e condimentos, foi, porventura, a parte mais interessante do workshop mas, no final, uma vez cumprida com esmero as instruções da criadora de paladares que conduziu a sessão, a Pikitim dirigiu-se ao pai e soltou um benevolente “tu cozinhas mesmo bem”, após provar um simples cracker de arroz, frito sem truques nem ciência.
Foram, portanto, dias de muitas e variadas actividades. A Pikitim não chegou a conhecer o sultão, mas percebeu que passado e presente se vão fundindo com relativa harmonia no quotidiano de Yogyakarta, até pelo facto de ver coisas tão corriqueiras como carroças com cavalos a transportar pessoas no meio da cidade – coisa que a Pikitim fez questão de experimentar. Como seria de esperar, adorou andar de carroça, mas não ficou totalmente satisfeita quando apercebeu que os “pobres cavalinhos” andavam com os “olhos tapados” e eram forçados a apanhar com os fumos dos escapes das motas que literalmente os cercavam nos cruzamentos com semáforos.
Essa consciência tocou-nos. E surpreendeu-nos, até. Talvez um dia a Pikitim se volte a lembrar dos “cavalinhos” de Yogyakarta quando descobrir que o chamado progresso nem sempre é indolor. Já terá valido a pena respirar os gases das motos.
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