Não foi fácil convencer a Pikitim que a cidade para onde nos dirigíamos tinha sido construída do nada. Que era agora uma cidade gigante, com muitos prédios, luzes e cores onde antes era um deserto, no meio de um vale com pouca vegetação e rodeado por montanhas secas. E que iríamos ver aparecer essa cidade depois de atravessarmos uma estrada muito “comprida” em que também se veria muito pouco – uma forma de a preparar para os cerca de 400 quilómetros que tínhamos pela frente. “Se lá tem uma cidade, já não é um deserto. O que é que lá vamos ver?”, questionou.
A conversa surgiu quando ainda estávamos no lado norte do Parque Nacional Grand Canyon, deslumbrados com a magnitude da paisagem defronte dos nossos olhos. Depois da beleza natural dos parques Yosemite e Zion, éramos surpreendidos por uma grandiosidade que não conhece limites. O Grand Canyon é simplesmente avassalador. E a Pikitim estava incrédula: “Não me estás a dizer que isto é uma fenda na casquinha da terra, pois não? Se houve aqui um terramoto e fez um buraco deste tamanho, deve ter sido assustador!”, disse, após ouvir atentamente as explicações inscritas numa placa informativa, e que referiam que ainda hoje é possível sentir a terra tremer ligeiramente.
Estávamos no Bright Angel Point, um miradouro que nos pede um pequeníssimo esforço para percorrer um trilho cimentado para nos devolver uma visão comovente de um “caminho” desenhado entre paredes imperturbáveis de pedra avermelhada com quase um quilómetro de altura. Paredes “com risquinhos”, como se fossem panquecas, umas em cima das outras, com tonalidades que percorrem toda a paleta de cores quentes.
Chegamos a Las Vegas já muito ao fim da tarde, naquele período do dia em que as cores do crepúsculo já estão a empalidecer e as luzes dos néons começam a brilhar. Mas a luz que mais chamou a atenção da Pikitim foi a de uma “caneta gigante” que rasgava o céu. A petiza lembrava-se da “caneta” com que os astrónomos do Observatório do Monte John (no Lago Tekapo, Nova Zelândia) nos ajudaram a identificar alguns astros, mas aquela “caneta” tinha uma “grossura” fora do habitual. Quando lhe explicamos que a luz saía do topo de uma pirâmide do sumptuoso hotel Luxor, ela lembrou-se da conversa da manhã. “Há pirâmides?! E aqui também há camelos? Mas, como é que uma cidade como esta pode ser um deserto?”, interrogou-se.
Na verdade, a ascensão da “cidade do pecado” é meteórica. Há menos de 100 anos, não havia nada de nada. Hoje, Vegas é uma cidade jovem, cujos habitantes têm em média 35 anos, e cuja população está há mais de uma década a crescer a 20 por cento ao ano. “É estranho, mas nesta cidade as atracções, os restaurantes, os museus, as salas de espectáculos estão quase sempre dentro dos hotéis”, avisamos a Pikitim. E, pior, não se consegue chegar a lado algum no interior de um hotel sem passar pelas salas de máquinas dos casinos.
“Mas porque é que não fazem máquinas para as crianças também jogarem?”, reagiu indignada quando lhe explicamos que não podíamos ficar muito tempo naqueles corredores. “Mas estas máquinas não têm muitos botões. É como a Nintendo, eu devo conseguir aprender”, insistiu. Mas os jogos são com dinheiro a sério. Ela tentou de novo, mudando os argumentos: “Porque não metem vocês uma moedinha? Assim eu ficava a ver”. Acabou por desistir, contrariada. “Os parques da Disney são para crianças, mas os adultos também se podem divertir. Aqui é só para adultos e as crianças não podem fazer nada. Não tem piada nenhuma”, reclamou. Mas haveria de mudar de ideias.
Quando se esqueceu da proibição de experimentar as máquinas, e se convenceu de que aqueles jogos para “ganhar” peluches ou outro tipo de brinquedos até poderiam parecer muito fáceis mas dificilmente davam direito a prémios, soube aproveitar melhor as “curiosidades” de alguns dos hotéis em que entramos. No Bellagio, por exemplo, reconheceu a “árvore da sabedoria”, uma personagem do livro A pequena Estrela, que a acompanhou na viagem. No Circus, Circus gostou muito das acrobacias de uma ginasta equilibrando-se e contorcendo-se numa rede nas alturas. No Treasure Island, espantou-se com o espectáculo Mystère do magnífico Cirque du Soleil (o único evento em que pagamos para entrar) e com um assalto de piratas a um “barco de meninas”, uma produção diária, no exterior do hotel, para atrair clientes e jogadores. E no exterior do Mirage quis esperar para ver um “vulcão” para concluir que aquela animação não era “nada de especial”. “Um vulcão a sério não é assim”, recordou, lembrando-se do que viu, ao longe, em Vanuatu.
Na verdade, muitos dos hotéis de Las Vegas são temáticos, fingem ser “qualquer coisa” ou evocam uma localização diferente. Uns simulam as cidade de Roma, Veneza, Nova Iorque ou Paris. Outros fingem ser “coisas” como um castelo ou uma pirâmide. E outros ainda, não simulando nada, não escapam no entanto à imaginação infantil. É o caso do luxuoso Encore, do magnata Steve Wynn (um dos responsáveis por Las Vegas ser aquilo que é hoje). Para a Pikitim, os dois prédios dourados que compõem o resort eram, evidentemente e sem margem para dúvidas, dois guardanapos. “Nesta cidade são mesmo tolos, não são?”, perguntou.
Deixe um comentário