Chegamos a Vanuatu, um arquipélago em forma de Y perdido no meio do Pacífico, sem grandes planos. Foi Janelle, a diligente gerente da Travellers Budget Motel onde nos instaláramos em Port Vila, que nos sugeriu: “porque não vão passar uns dias a casa de Albert, em Lelepa?”. Nunca tínhamos ouvido falar de Lelepa e não fazíamos ideia sobre o que nos estava a propor. Mas, vivendo em casa de Albert Solomon, poderíamos experimentar a verdadeira vida de aldeia de uma família de Vanuatu. Ficaríamos na sua casa, partilharíamos as refeições, poderíamos vivenciar o dia-a-dia de uma comunidade que subsiste basicamente com o que a Natureza lhes oferece. Sem luxos, mas com muita boa vontade. Ah! E haveria muitas crianças na casa e na aldeia de Albert. A proposta era irresistível.
Um par de dias depois estávamos num pequeno barco a cumprir as poucas milhas que separam Efaté (a ilha principal, onde se situa a capital Port Vila) da pequena ilha Lelepa, sem ideia de estarmos a caminho de uma ilha famosa desde 2004, por ali ter sido filmado o reality show “Survivor Vanuatu – Islands of Fire”. Apercebemo-nos disso quando, já atracados em Lelepa, Aaron, barqueiro e irmão de Albert, nos explicou que iríamos atravessar uma pequena selva até chegarmos à belíssima praia de Fulltok, um dos pontos-chave do reality show onde a trupe então se reunia e nos aguardava um barbecue.
A caminhada foi muito curta e fácil (e de selva pouco tinha), sobretudo se comparado com aquele que fizéramos, dias antes, numa aldeia a sul de Port Vila. Lá, tivéramos de escalar pedras, socorrermo-nos de lianas e subir pelo leito seco de um rio; aqui, a passagem era larga e o chão parecia ter sido varrido horas antes. A Pikitim aproveitou os conhecimentos adquiridos em Efaté para partilhar com Aaron e companhia: “Olhem! Uma das folhas que pode servir de guarda-chuva!”, reconheceu, apontando para um taro selvagem, que tem folhas tão pesadas quanto resistentes.
Com Henry, que nos guiara por uma densa floresta até chegarmos à aldeia de Etas, a Pikitim tinha aprendido que na selva há plantas medicinais que servem para aliviar a picada de mosquitos, e outras que ajudam a cicatrizar as feridas: “Quando na selva nos cortamos com a catana [praticamente toda a gente, de quase todas as idades, incluindo crianças, andam cm catanas], esfregamos esta erva e o corte pára de sangrar”, anotou. Aaron acrescentou a estas uma outra planta que, quando mascada, alivia a dor de dentes. A selva dá terapêuticas, alimento (não faltam cocos, mangas, papaias, toranjas, bananas) e materiais para construir abrigos. Tem quase tudo o que é preciso para alguém sobreviver – e o mar complementa.
Em Lelepa, os homens vão cedo pescar, ou vão para os “jardins” tratar daquilo que levarão para casa para as mulheres cozinharem, como a cassava ou o taro, dois tipos de tubérculos muito usados na gastronomia local. ”Já viste que aqui também não querem fogões, e cozinham na fogueira?”, reparou a Pikitim
A aldeia era, de facto, muito pobre. Não havia fogões nem electricidade, e a grande maioria das famílias não tinha sequer um gerador ou painéis solares para iluminação após o cair da noite. Por isso mesmo, os horários do quotidiano regem-se pela presença da luz solar. Acorda-se com os primeiros raios de sol, janta-se com o cair da noite. Os homens ainda vão beber kava,uma bebida feita através da maceração da raiz de uma planta, que tem efeitos sedativos e que parece (e sabe) a lama. Às nove da noite o silêncio é total.
Na casa de Albert dormimos em três colchões espalhados no chão, tomamos duche de água fria, não tínhamos energia para carregar o equipamento electrónico. Mas foi dos sítios em que a Pikitim se sentiu mais solta e feliz a brincar com os muitos meninos da aldeia. Os brinquedos eram cocos e corais apanhados do chão, além das canetas, lápis e cadernos que carregamos continuamente. Montaram um pequeno “atelier” em cima de um dos depósitos de água e, quando não andavam a correr atrás de cães, porcos e galinhas, passavam ali intermináveis momentos a desenhar. Ela, que durante estes meses não tem ido à escola, como muitos dos seus companheiros de brincadeira, até parecia estar a sentir a falta do ambiente escolar.
Quando fomos visitar a escola primária de Amaro, que serve a comunidade de Lelepa, a Pikitim teve pena de não poder lá ficar mais tempo, a aprender “com os mais crescidos”. Os meninos da quarta classe estavam a fazer cálculos e conversão de medidas de capacidade, e a Pikitim não queria arredar pé. “Eu queria ficar mais um bocadinho, porque quando for crescida também vou ter de aprender estas coisas e assim já sei como se faz”, argumentou inteligentemente, ficando depois desiludida por não o poder fazer. Brincou com eles no intervalo, e ficou surpreendida com a chamada para entrar: “Porque é que aquele menino está a bater com um ferro no outro?”. Não há campainhas nem toques, mas havia ordem imediata para descalçar os chinelos à porta e entrar na sala de portas abertas e janelas escancaradas.
Passadas poucas horas estavam todos à volta dela outra vez. A Enna, o Ryan, a Sirina, o Fredson, e Pete, o “melhor amigo”. “Foi ele que me deu estas pulseiras [elásticos do cabelo coloridos]. Ele tinha seis e deu-me três”, contou. Partilhou o pouco que tem. Na despedida, a Pikitim deixou o que tinha de mais precioso: um desenho feito com amor para cada um deles.
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