Parecia que estávamos a chegar à África negra. Tínhamos acabado de aterrar no pequeno aeroporto de Lenakel, ilha de Tanna, com o objectivo de tomar contacto com a vida nas mais tradicionais aldeias de Vanuatu e espreitar um vulcão activo a vomitar lava e fumo. É impossível estar mais perto de um vulcão ativo do que no Yasur – porque aqui deixam-nos subir até à boca da cratera até ficarmos praticamente dentro dela. Nós queríamos ver o vulcão, mas a Pikitim dizia que só “ao longe”, que não pretendia subir ao vulcão porque – palavras dela – é “muito nova para morrer”.
Na verdade, e apesar da espectacularidade do Yasur, porventura a principal atracção turística de Vanuatu, o que mais nos atraía em Tanna era a possibilidade de visitar algumas das aldeias tradicionais, daquelas que resistem ao passar do tempo, ao chamado “progresso”, ao ocidente e à globalização, e permanecem agarrados firmes às suas tradições ancestrais.
Numa ilha com tanto turismo (à escala de Vanuatu, claro está, que não são muitos os que se aventuram sequer na ilha principal de Vanuatu, quanto mais em Tanna) e com uma atracção da envergadura do Yasur, é impressionante que não se consiga encontrem em toda a ilha estabelecimentos comerciais gerido por “brancos”; nem os mais-que-globalizados-e- omnipresentes-chineses chegaram a Tanna. A capital da ilha é, aliás, conhecida como a “black-man town”, orgulhosa de deixar para os seus conterrâneos os pequenos comércios da terra. Não o conseguiram fazer, no entanto, com os resorts básicos comprados ou construídos por australianos e neozelandeses e colocados à disposição dos viajantes. Mas mesmo estes – como o Friendly Bungalows, onde nos alojamos – tentam empregar o maior número possível de pessoas das aldeias vizinhas, pelo que cada um deles só trabalha duas semanas por mês, numa espécie de turnos que permitem aumentar a empregabilidade, mesmo à custa de rendimentos menores.
A semana que passamos em Tanna, bem pertinho do vulcão Yasur, foi uma espécie de viagem no tempo, um regresso a um passado em que o relógio parou. Nas aldeias, sobrevive-se e subsiste-se com o que a generosa natureza dá mas, sendo os barcos demasiado caros para a grande maioria da população, nem sequer o peixe faz parte da dieta alimentar habitual. Comem-se raízes e frutos, e os porcos são quase mais valiosos que os Vatu que circulam em notas e moedas de mão em mão.
É Tomsia, temporário guia turístico que se assume como candidato a chefe da aldeia de Yakel, quem nos permite visualizar a importância dos porcos, explicando que, quando um homem pretende casar (com a mulher que o chefe da aldeia escolheu para ele), tem de pagar ao pai da noiva um valioso dote. “O quê?! Você não pagou nada ao pai da Luísa para poder casar com ela? Se fosse aqui teríamos de lhe dar… hum (e tira as medidas com os olhos)… nove porcos! Mas porcos, dos grandes!”, acrescentou, antes que pensássemos que a “mercadoria” era pouco valiosa. Tomsia conta que a visita dos turistas veio trazer uma forma adicional de subsistência à comunidade, ao cobrarem alguns milhares de vatus pela visita à aldeia, incluindo uma encenação de algumas danças tradicionais que se fazem para celebrar, por exemplo, os tais casamentos.
Nós contribuímos para a parca economia visitando duas dessas aldeias, uma em cada lado da ilha. O ideal teria sido ficar alojado nelas, como soubemos posteriormente que teria sido possível (em Yakel há uma casa na árvore onde os estrangeiros podem pernoitar), evitando as encenações e vivenciando o dia-a-dia da comunidade por dentro. Para além Yakel, terra de cinco famílias e pouco mais de 150 habitantes, visitámos também a aldeia de Tapu, ainda menor, na costa ocidental da ilha. Quando lá chegamos, uma mulher de vestido esfarrapado tocou com dois paus num tronco para chamar os outros habitantes da aldeia, e desapareceu. Indicaram-nos umas escadas e apontaram o caminho para um terreiro junto a uma grande banyan tree, onde deveríamos esperar.
Estava um dia de chuva, e a aldeia parecia deserta. Só se viam crianças. “Ó mãe! Aquela menina está com uma faca na mão! Não é perigoso? É uma menina, não é?”, perguntou a Pikitim, depois de reparar que ela só trazia cuecas vestidas. Ficamos sem saber o nome da menina, mas teria três ou quatro anos e estava acompanhada por Maria, de oito, que dava colo a Nato, com pouco mais de um ano. “My name is Inês”, disse-lhes a Pikitim. Nunca mais a largaram, sempre em silêncio, sempre a sorrir. Até que um assobio os fez desaparecer abruptamente. Era o sinal de que estava tudo pronto para o início da cerimónia de boas-vindas.
Primeiro, entraram no terreiro os homens, saídos do meio da banyan tree. “Não têm roupa!”, reparou a Pikitim. Começaram a bater palmas, a andar à roda, a bater com força os pés descalços no chão enlameado. Usavam apenas as ancestrais nambas nos genitais, uma espécie de bolsa de palha provocadoramente empinada com que tapam o pénis. Depois, do lado oposto, entraram as mulheres, envergando saias de palha seca. Davam saltos, enquanto seguravam os seios para turista não ver. “Já viste que estão a tapar as maminhas com as mãos?”, perguntou, para nunca mais dizer nada e ficar tranquilamente a assistir às danças, com o corpito a balançar-se ao ritmo dos cânticos. E bateu muitas palmas no final.
Por altura dos cumprimentos finais, Chuck, o chefe da aldeia, deixou-se emocionar quando soube que vínhamos de Portugal. “Tão longe! E jogam tão bem futebol! Gostávamos de ter das vossas camisolas…”, apelou, sentido. Abraçou-nos, comovido, e virou costas para buscar uma estatueta de madeira e dois colares manufacturados com sementes para nos oferecer. Colocou-nos os colares ao pescoço, abraçou-nos de novo de forma sentida, olhou-nos nos olhos como fazem os homens dignos em momentos importantes, e soltou a maior das honrarias: “Quando voltarem aqui ficam em minha casa, são meus convidados.”
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