Já tínhamos passado pela bacia de Mackenzie e pelo lago Tekapo, já nos tínhamos abeirado do Monte Cook, a montanha mais alta da Nova Zelândia, através do trilho Kea Point, e estávamos a contornar uma das margens do esplêndido lago Pukaki, com as águas transformadas em espelho da Natureza envolvente, quando a Pikitim fez uma notável descoberta: “O reflexo da montanha está ao contrário”. Estávamos, enfim, a atravessar paisagens tão evidentemente belas que a Pikitim, habitualmente tagarela, sofreu uma notória transformação. A caminho de Queenstown, do alto do seu trono-cadeira colocado ao fundo da autocaravana, atrás da mesa que continuava montada mesmo em andamento, avisou a mãe que não queria conversas nem jogos. “Tenho de olhar para estas paisagens. Não me posso distrair a conversar contigo!”. Estava dado o mote para uma semana entre paisagens cinematográficas.
Nesse dia, para partilhar o momento com os seus mais queridos pertences, posicionou na janela da caravana o velho amigo Pipocas (o peluche preferido desde a primeira infância) e os novos companheiros Koala e Canguru (oferecidos por João Silva, um amigo português que nos abriu as portas de sua casa em Mandurah, na Austrália), para que eles também não perdessem pitada da paisagem.
Foi, no entanto, sol de pouca dura e esse comportamento não se repetiu muitas vezes. Rapidamente, a Pikitim habituou-se à beleza natural da Nova Zelândia e voltou às rotinas de tagarelar e brincar durante as viagens (“Oh, é só um lago, já vimos muitos”). Mas surgiu, isso sim, uma nova pulsão: a urgência de guardar para sempre aquelas paisagens, como se tivesse medo de se esquecer delas. Cada vez que parávamos a caravana na berma da estrada, ela queria sair e imitava o pai, apontando a sua consola portátil com mais pressa que precisão para fotografar uma montanha de picos nevados, um lago feito espelho, as cores das nuvens, um “cavalo com roupa” ou os extensos rebanhos e manadas que preenchiam os prados verdejantes. E assim foi armazenando tudo quanto lhe chamava a atenção.
Até que chegou a Queenstown e subiu pelo teleférico Skyline Gondola até ao topo do pico Bob. Um miradouro deixava o lago de Wakatipu aos nossos pés, as montanhas The Remarkables bem à nossa frente e o casario de Queenstown entre as duas, iluminado pelas cores quentes da manhã. O cenário era estupidamente fotogénico, mas não foi a consola que a Pikitim pediu. “Isto é tão bonito, não acham? Trouxeram os meus cadernos? Eu tenho mesmo de desenhar isto!”. E aproveitou uma mesa de madeira ao sol para perpetuar nas folhas brancas do seu caderno, com os seus traços infantis, aquela beleza incrível.
Enquanto desenhava, mantinha-se atenta a tudo o que a rodeava. Lá no alto havia uma rampa de bungie jumping e, um pouco mais acima, existia um ponto de descolagem dos voos de parapente. De vez em quando, a petiza suspirava que devia ser “muito bom” andar pendurado nas cadeirinhas que levavam os visitantes até ao ponto de descolagem ou planar num dos muitos parapentes cujo voo viu levantar. E não deixava de questionar sobre o funcionamento das actividades de aventura como o bungie jumping, popularizada mundialmente ali mesmo, em Queenstown. Para a Pikitim, a ideia de saltar para o abismo amarrada por uma “corda” pareceu-lhe “assustadora”. Do que gostou mesmo, já no regresso à cidade, foi do muito popular e bem mais tranquilo frisbee.
Trata-se de um jogo social e gratuito, com regras semelhantes ao golfe mas que, em vez de tacadas na bola para acertar num buraco no chão, se lança um disco de plástico com o objectivo de acertar em 18 cestos estrategicamente colocados num ambiente verdejante. Foi nos jardins de Queenstown, com as árvores pintalgadas com cores outonais, que a Pikitim se rendeu aos encantos do frisbee.
Saímos de Queenstown a contragosto, mas tínhamos um motivo fortíssimo para o fazer. Seguimos com destino a Te Anau, uma pequena cidade nas margens do lago homónimo e porta de acesso à região dos fiordes neozelandeses, a Fiordland, protegida pela UNESCO com a classificação de Património Mundial. O objectivo era percorrer uma das mais espectaculares estradas da ilha Sul, que liga Te Anau a Milford Sound bordejando a Fiordland.
O primeiro troço da viagem não é uma paisagem de montanha, antes de planície com alguma pastorícia. As montanhas, claro, estão sempre presentes na paisagem. Desenhavam-se deslumbrantes jogos de luz à volta dessas montanhas, lá ao fundo. A consola feita máquina fotográfica regressou às mãos da Pikitim: “Quando for grande quero lembrar-me destas coisas bonitas todas”, justificou. Na verdade, não havia tempo para desenhar tanta coisa. De repente, a montanha já não estava lá ao fundo, estávamos nós dentro da montanha. E, após a escuridão do túnel Hommer, que a atravessa, foi então que a paisagem se tornou dramática, com cascatas por todo o lado. Numa das muitas paragens que fizemos para admirar a paisagem, fomos recebidos por um casal de keas atrevidos, uma espécie de papagaios gigantes endémicos na Nova Zelândia. “Mas porque é que não podemos dar-lhe comidinha?”, insistia, incrédula, a Pikitim, que queria tratar os keas da mesma forma que os patos, alimentando-os a pão duro.
Chegamos a Milford Sound satisfeitíssimos e maravilhados, mas ainda haveríamos de ser presenteados por mais um quadro digno da sétima arte. O céu nublado impedia o sol de iluminar o Mitre Peak – uma das montanhas mais fotografadas do país – e mergulhava-o numa multiplicidade inebriante de tonalidades, entre o cinza-claro e o preto. Com as condições meteorológicas desfavoráveis, optámos por não fazer uma das mais populares actividades turísticas neozelandesas: um cruzeiro nos fiordes de Milford Sound. Na homónima aldeia, parámos a observar. A Pikitim sentou-se junto ao fiorde feito espelho e parecia que tentava apanhar com as mãos os raios de luz que furavam as nuvens. Depois de tantos cenários naturais deslumbrantes e com o Mitre Peak reflectido nas águas, não pudemos deixar de nos interrogar, qual Rainha madrasta: Haverá paisagens mais belas que as da Nova Zelândia?
Natália diz
Cheguei aqui pela reportagem do jornal Folha de São Paulo. Adorei o site e a ideia da viagem. Vocês vão passar pelo Brasil?
Luísa Pinto diz
Olá Natália,
dessa vez o Brasil não está no roteiro. Mas vai estar nos próximos, com toda a certeza. A Pikitim ainda não conhece, mas já diz que quer conhecer. E os pais dão todo o apoio nisso – já conhecem algumas partes, e adoram! Quem sabe em 2013?!