Chegamos à central de camionagem de Puerto Princesa cedo demais. Ou, visto por outro prisma, a tempo de observar o tejadilho do decrépito autocarro ser carregado com todo o tipo de bidões de combustível, caixas com víveres e diverso material de construção com destino a Sabang. Duas dezenas de enormes sacos de arroz já estavam lá em cima quando Manuel e Astrid chegaram ao terminal. Olhando para o estado da viatura, a viagem prometia ser longa. Mas todos tínhamos tempo.
Manuel é madrileno, Astrid holandesa, ambos vivem em Ibiza há várias décadas. Estavam nas Filipinas em viagem por dois meses, com especial ênfase na ilha Palawan. Simpatizámos com eles e, chegados a Sabang, após quase três horas de viagem para percorrer pouco mais de 80 km, juntos visitámos uma a uma as guesthouses com bungalows e caixinhas de bambu a que chamam quartos, à procura de um local para pernoitar. Mas Sabang é tão pequeno que, exceptuando os dois resorts de luxo com preços exorbitantes que dominam a praia, praticamente não havia quartos disponíveis. Mais de hora e meia depois, estávamos finalmente instalados num bungalow básico mas simpático, que tinha passado despercebido na primeira passagem pelo areal, tal a quantidade de gente que almoçava nas mesinhas de madeira construídas entre os aposentos e o mar, bem à frente do que haveria de ser a nossa casa por uns dias. Foi o primeiro contacto com os grupos de excursionistas que chegam diariamente de Puerto Princesa para conhecer o rio subterrâneo de Palawan, classificado Património Mundial pela UNESCO e recentemente eleito como uma das Novas 7 Maravilhas Naturais do Mundo.
No dia seguinte, manhã cedo, muito antes dos restantes turistas chegarem a Sabang, já marcávamos presença no cais de embarque da aldeia na companhia do casal “espanhol” – tão cedo que embarcamos logo no segundo barco que abalou do porto até próximo do rio. Era a forma de evitar enfrentar longas filas para visitar a gruta em barquinhos que parecem de brincar. Mais tarde haveríamos de agradecer duplamente a opção: não só porque de facto evitamos as demoras, mas também uma inesperada tempestade que se abateu sobre Palawan durante quase uma semana. Era uma baixa pressão fora de época que, a partir da tarde, haveria de trazer ventos e chuvas fortes numa estação que o calendário define como seca.
Navegámos então por baías bonitas, com águas cristalinas e uma paisagem dominada por formações calcárias. Foi nas entranhas de um desses montes – o monte São Paulo – que o rio Cabayugan escavou o seu actual percurso até desaguar no mar filipino. A extensão do rio subterrâneo ronda os 24 quilómetros, quatro dos quais navegáveis, mas a parcela visitada sob permissão das autoridades que gerem o Parque Natural fica-se pelos 1500 metros. Parece pouco, mas não é, principalmente para uma pequenota com medo do escuro.
Lá dentro, o cenário era “um bocadinho assustador”, disse logo a Pikitim, sem disfarçar o pavor da escuridão e dos morcegos e uma contínua vontade de ir embora. Só a custo, e aos poucos – principalmente depois de infringirmos as regras de segurança e lhe tirarmos o colete salva-vidas tamanho adulto que a encafuava entre pai e mãe tornando a viagem desconfortável -, a Pikitim começou a relaxar, a achar (alguma, pouca) piada à gruta e a entreter-se tentando visionar figuras de vários géneros nas formações rochosas que Manuel, na proa, iluminava com uma potente lanterna por indicação do guia-barqueiro. Eram animais como elefantes ou tartarugas, uma Nossa Senhora numa caverna a que chamam “catedral”, as formas curvilíneas da actriz Sharon Stone, ou um poio num sítio a que chamam “casa de banho”.
As explicações com que fomos presenteados, longe de serem geológicas ou científicas, assentavam neste tipo de piada fácil. O guia ria-se das próprias graças repetidas vezes sem conta bem mais que os turistas a bordo, mas pelo menos não havia outra pretensão que não a de ser engraçado. Apesar de tudo – e das traduções que fomos tentando fazer para ela perceber porque o senhor do barco tanto se ria -, quando, no final da visita, perguntámos à Pikitim a sua opinião sobre o rio subterrâneo de Palawan, ela não hesitou: “A Natureza faz coisas muito mais bonitas. É um lugar assustador. Eu não gostei muito”.
Na verdade, houve outras “maravilhas da Natureza” que a Pikitim apreciou bem mais na ilha em forma de guarda-chuva. Quando ainda estávamos em Puerto Princesa, fomos fazer um passeio de barco por Honda Bay, uma baía pintalgada de ilhas que um guia de viagens descreve como um “parente pobre do arquipélago Bacuit”, mais a norte, mas que ainda assim “faz boa figura quando comparado com as Caraíbas”. Nada mau, portanto. E a Pikitim concordou.
Desde logo, pela ideia de andar num triciclo desde Puerto Princesa até ao cais de Santa Lurdes (a Pikitim acha muita piada aos “triciclos dos adultos”, as motorizadas com sidecar artesanal que fazem serviço de táxi em muitos países da Ásia). E, claro, pelo passeio de barco, pelos mergulhos e pelo snorkelling.
No porto, conhecemos um jovem casal de acrobatas ingleses a trabalhar num casino de Macau, e com eles dividimos o aluguer do barco. E mais uma vez poupámos dinheiro evitando os tours organizados a partir da cidade. O resto conta-se em palavras azuis de mar e céu.
Fizemo-nos ao mar até pararmos no recife Pambato, onde foi construída uma plataforma acessível a partir de passadiços de bambu, a partir da qual a Pikitim voltou a ter oportunidade de praticar snorkelling; atracámos na ilha Starfish, mas não encontramos uma única das estrelas do mar que dão nome à ilha; esticámos toalha na Snake Island, assim chamada por causa de uma longilínea língua de areia que muda constantemente de posição ao sabor das marés; e, finalmente, almoçámos na ilha Pandan um peixe e caranguejos fresquíssimos, grelhados na hora e servidos numa folha de bananeira acompanhados por uma pratada de arroz – tudo para comer à mão (coisa que a Pikitim naturalmente adorou!). Passámos a tarde em Pandan brincando e jogando e nadando, e foi por isso com natural facilidade que, no regresso a casa, o dia passado em Honda Bay estava já registado no sorriso cansado da miúda.
Imersa em tanta beleza e diversidade natural, foi uma semana em que a Pikitim se impressionou com o poder criativo da Natureza. Seja ele em tons de azul ou de preto. E isso tê-la-á feito pensar. No dia da visita ao rio subterrâneo de Palawan, em pleno barco envolta em estalactites e incríveis formações rochosas, indagou de ar sério e admirado: “Mãe, foi mesmo a Natureza que fez isto? Sozinha?”
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