É como se as pedras se transformassem em folhas de papel e, qual banda desenhada – ou livro ilustrado –, são as paredes dos templos construídos há mais de uma mil anos que contam histórias. Assim como ouve com atenção as fábulas e contos infantis (e adora aquelas que no final dizem “e a moral da historia é…” ), a Pikitim deixou-se enredar nas complexas histórias contadas pelas paredes dos templos hindus de Prambanan, a poucos quilómetros de Yogyakarta, e nos relevos do templo budista de Borobudur.
Como qualquer criança, a Pikitim adora que lhe contem histórias. Quando tem apenas um ou dois livros de determinada coleção, pede que lhe procurem na Internet (pois, é de outra geração) as historias que lhe faltam – os últimos pedidos foram “Os duendes sapateiros” e “Corre, corre cabacinha”. Pede histórias contadas até à exaustão e sabe-as de cor – se lhe estamos a ler um livro, repara quando uma palavra é modificada ou é alterada uma formulação frásica. “Agora estás a inventar, não é isso que diz no livro”, apressa-se a corrigir, mesmo ainda não sabendo ler para o confirmar.
Esta atenção ao detalhe que lhe é característica e o gosto de ver coisas novas dava-nos esperança de que se haveria de divertir a visitar os templos. Não nos enganámos. Se a saga Indiana Jones já fosse do seu conhecimento, haveríamos de sugerir que era nesses ambientes que ela se sentia bem. A personagem Dora, a Exploradora até poderia parecer a mais indicada, mas não havia aqui grandes desafios a ultrapassar, apenas muito inglês para aprender.
Ambos classificados Património da Humanidade pela UNESCO, os templos de Prambanan e Borobudur são muito diferentes entre si, não só pela vocação religiosa que os fez surgir (os primeiros são hindus, o segundo é budista), mas também pela forma arquitetónica como essa vocação se expressa.
Visitamos os templos de Prambanan acompanhados por um trio de estagiárias que pretendiam qualificar-se para guias turísticas e se ofereceram para acompanhar a nossa visita. Foram elas que nos chamaram a atenção, logo na entrada, para um amontoado de pedras onde se podia perceber a forma como cada uma das peças se encaixava. O alto relevo numa pedra, e o baixo relevo na outra permitiu à Pikitim perceber rapidamente o processo. “Encaixam como Legos!”, exclamou. E é mesmo isso.
Se se deixou impressionar pela “tecnologia” que permitiu construir todo aquele empreendimento, mais impressionada ficou ao reparar que havia “desenhos nas paredes” das dezenas de templos que compõem o complexo de Prambanan. Foi logo à entrada do templo dedicado a Shiva, o mais importante e interessante do triunvirato de templos, tal como manda a mitologia hindu, que a Pikitim reparou na “árvore da vida” rodeada por dois leões. A partir daí, dedicou-se a procurá-la em todos as paredes e templos, tanto nos edifícios do trimurti de Shiva, Brahma e Vishnu como nos muitos templos secundários que os circundam. E quando chegou a casa, tratou de desenhá-la no seu diário gráfico.
Nos templos de Borobudur, uns dias depois, já se deixou encantar pelas histórias que as paredes contavam, e deu uma atenção especial à história da rainha Maia e do seu filho Siddharta. Ouviu a história contada por estudantes de turismo que acompanharam a nossa visita (o preço a pagar, aqui, como em Prambanan, foi escrever um pequeno relatório a indicar se tínhamos gostado ou não da visita), e depois quis repeti-la ao pai. Tal como faz com os livros.
Faltou muito para que a Pikitim percebesse a história de Siddharta, o bebé que agora todos conhecem e reverenciam como Buda, pela sua capacidade de ter atingido o Nirvana. Nós íamos explicando o melhor possível, ou melhor, traduzindo aquilo que ouvíamos das candidatas a guias. Por exemplo, que nos sete primeiros níveis dos templos (o edifício tem dez) as stupas têm losangos a decorá-las, e que nos três últimos as figuras passam a quadrados, porque está mais próximo do Nirvana, da perfeição. Apontando para as stupas, dava para a Pikitim perceber. E, sendo difícil explicar o que é a meditação e a busca pelo paraíso, os cerca de 1.500 painéis figurativos que revestem o templo de Borobudur passaram a resumir a história da rainha Maia e do seu filho Siddharta.
Quais páginas ilustradas, os relevos ajudam a contar a história da rainha Maia que queria muito ter filhos, mas não conseguia. Até que um dia sonhou que tinha um elefante branco na barriga, e contou ao rei que sentia que algo ia acontecer. “Afinal, estava grávida mesmo”, resumia ela ao pai, que se tinha afastado para fotografar. E continuava, a puxar o pai pela mão, para olhar para as figuras e lhe continuar a contar a história. “Aqui é a rainha Maia a fazer uma grande viagem, a caminho da casa da sua mãe porque ela queria ter lá o seu bebé. E ali [o relevo seguinte] é já o bebé a nascer, porque afinal ele nasceu no meio do caminho”.
Estávamos no terceiro nível e, à medida que íamos subindo no templo, a Pikitim começou a perder o interesse nos altos-relevos. Não só eles já não contavam a história da rainha Maia, mas antes sobre outros conceitos do budismo como o karma, mas também porque um grupo de budistas estava a subir o templo em oração. Ouvi-los a cantar (“O que é que eles estão a dizer?”, repetia, curiosa) tornou-se irresistivelmente mais apelativo do que as paredes do templo. E foi lá em cima, onde está figurada a chegada ao Nirvana e à perfeição, que a Pikitim se deliciou a apreciar a paisagem envolvente. “Já repararam que aquelas montanhas parecem uma senhora deitada? Está ali a cabeça, ali os ombros e as maminhas, e depois as pernas”, dizia a pequena. As nossas guias explicaram que era a “antiga guardiã do templo”. Está visto, a idade não interessa – crianças e adultos, todos podem imaginar histórias de encantar sem ser nos livros infantis.
sandra diz
Encantei-me 🙂
Permita-me dizer (mais uma vez) que adoro a perspicácia da Pikitim e as suas observações mas a forma como a Luísa escreve transporta-me ainda mais para outros mundos. Nunca consigo ficar aqui quando a leio, vejo-me sempre a ser transportada para os locais, a viver os momentos, a ouvir e saborear as palavras da Pikitim – imagino a voz de criança.