Está escrito em muitos guias, brochuras turísticas e em fóruns de viajantes. Chamam a Bali a “ilha dos deuses”, um jargão turístico que se percebe e aceita depois de nos habituarmos a ver que os espíritos são, de facto, omnipresentes e justificam cerimónias a todo o momento. E, mais que em qualquer outro local, Ubud é uma pequena urbe onde essa espiritualidade parece pulsar mais forte. Foi aí, no coração da ilha de Bali, que assentamos arraiais para a mais prolongada estadia neste ano de itinerância planetária. E o local não poderia ter sido melhor escolhido.
Numa casa rodeada de arrozais na aldeia de Penestanan, arredores de Ubud, a Pikitim recebeu uma aguardada visita dos avós e vivenciou de perto uma encantadora mas dura vida rural. Quando ainda trazíamos as malas para dentro de casa, reparou num homem de pele curtida pelo sol, com as costas curvadas e os pés enfiados na lama, ocupado a revolvê-la. No dia seguinte, o homem encheu o terreno com pés de arroz alinhados, plantando-os um por um, numa longa e árdua jornada. Todos os dias a Pikitim reparava no tamanho das plantas, e apercebia-se das mudanças. Uma semana depois, tinham mais do dobro do tamanho. E quando vínhamos embora, já estavam “gigantes”.
Ela reparava em tudo quanto era arrozal. Não só à porta de casa, mas todos aqueles que compunham a paisagem nos muitos passeios que fizemos no interior da ilha. Depois de ter visto o arroz em várias fases de crescimento, a ser escolhido e a ser posto a secar, sentenciou que se tratava de “um grãozinho tão pequenino, mas que dá tanto trabalho”.
O valor do trabalho foi um dos aspetos que a Pikitim mais deixou sobressair durante a sua estadia em Ubud. Não apenas devido aos trabalhadores dos arrozais, mas também pelas muitas mulheres que, diariamente, sete dias por semana e muitas horas por dia, passavam à porta de casa com bacias cheias de areia na cabeça. Acartavam areia para as muitas obras de construção em curso nas redondezas, e a Pikitim mostrou-se deveras sensibilizada pelo esforço que algumas dessas mulheres notoriamente faziam: “são senhoras já tão velhinhas e ainda andam com estas coisas tão pesadas à cabeça; devem ser muito pobrezinhas, e precisam do dinheiro”, disse, um dia.
Mas houve, também, outro tipo de trabalho com o qual a Pikitim se deixou impressionar: o dos artistas. É retemperador estar em Ubud também por causa desta comunidade de gente inspirada e inspiradora. Artesãos, escultores, dançarinos, pintores de telas ou de tecidos. Gente inspirada pela paleta de verdes com que os arrozais tingem a paisagem, pelo colorido das flores e dos templos, sempre ornamentados, e pelo incrível azul do céu. Bem perto de Penestanan, encontramos um professor de artes visuais que deixou a Pikitim a coçar a cabeça, por causa da complexidade do desenho de uma deusa Shiva. “Que difícil, não é?”, admirou-se. E gente inspiradora, que pela qualidade do que faz e pela placidez com que executa os seus trabalhos nos deixa com vontade de experimentar. Foi o que fez a Pikitim.
A primeira arte tipicamente balinesa que captou a sua atenção de criança foram as danças tradicionais. Foi num espetáculo de Legong, impecavelmente executado pelos Gunung Sari, uma companhia fundada em 1926 e que integra uma magnífica orquestra de gamelão. Durante a quase hora e meia que durou o espetáculo, em nenhum momento a petiza deixou de prestar atenção ao enredo que se desenrolava perante os seus olhos. Deixou-se encantar pela perícia das “mãozinhas das meninas”- os dedos das mãos dos dançarinos representam, por si só, um espetáculo único. Surpreendeu-se por o rosto das bailarinas não revelar nenhuma expressão – “pareciam marionetas, aquelas caras não se mexiam! Nem um sorriso!” . E espantou-se com o “menino soldado”, o guerreiro Baris, muito representado na iconografia balinesa: “ele não se mexia, não mexia a cabeça nem nada, e tinha umas coisinhas no chapéu que não paravam de se mexer”. E assim era, num facto revelador da elevada carga de tensão física em que decorre a dança Legong.
As danças chegaram a ser uma hipótese para a Pikitim experimentar, mas ela perdeu a vontade de aprender quando assistiu aos ensaios infantis que semanalmente decorrem num dos mais interessantes museus da cidade, o Agung Rai Museum of Art (ARMA). “Isto é muito difícil, não vou conseguir”, avisou, decidida. Mas havia tempo e vontade para tentar executar uma das muitas artes balinesas – esculturas em madeira, joalharia, culinária, pintura, batik, danças, oferendas -, e em Ubud não falta gente disponível para ministrar workshops de todas elas. Entre todas as opções, a Pikitim disse que preferia aprender batik, alegando que gostaria de fazer um sarong ao seu tamanho.
Não foi difícil encontrar quem lhe fizesse a vontade e a ensinasse a pintar o seu sarong. Escolheu uma flor de lótus como desenho (feito com uma cera especial que impede a absorção de tinta), e elegeu como cores o rosa e o violeta para preencher todo o tecido. Uma vez pintado, o sarong foi então a “cozer” a altas temperaturas, num processo químico que permite estabilizar a cor com que se decoram os tecidos tão bonitos quanto úteis – ou mesmo obrigatórios, se em mente estiver a visita a um dos muitos templos existentes em Bali.
E há templos cuja visita é imperdível, sobretudo os chamados “templos da água”. Por exemplo, o muito conhecido Pura Tanas Lot, cujo acesso depende das marés e, por isso mesmo, estava inacessível quando o tentámos visitar. Ou o muito venerado Pura Ulu Watu, que ficará sempre na memória da Pikitim como o templo onde um macaco lhe roubou a havaiana e lhe deu uma grande dentada (e que grande susto ela apanhou!). Ou ainda o Pura Tirta Empul, onde uma nascente de água é tida como sagrada e os crentes ali se vão banhar para tratar doenças do corpo e do espírito. A Pikitim, no entanto, diz que o que mais gostou foi o de Gunang Kawi, por ter “estátuas cravadas na rocha e uma paisagem muito bonita”, no coração de uma montanha. E assim era.
Não faltam templos na ilha dos deuses. Há os “templos da água” e os “da montanha”, os templos comunitários de cada pequena aldeia e até os espaços de oração indispensáveis em cada complexo habitacional familiar. E cada arrozal tem um altar para homenagear Dewi Sri (a deusa do arroz e das colheitas). A vida de Bali está intimamente ligada aos deuses e espíritos e, apesar de Ubud ser o epicentro dessa devoção, a vida de Ubud é também uma vida de prazeres mais terrenos, ligados às artes e ao hedonismo. Cirandar pelas ruas de Ubud, entrando e saindo de galerias, cafés e restaurantes, livrarias e spas é também uma “arte” da qual desfrutamos em abundância. No caso da Pikitim, para além das danças Legong e do batik, nem era preciso mais que a sua piscina em Penestanan para a vermos feliz. Ao melhor estilo de Ubud.
Deixe um comentário