É tão sagrado como o Deus que respeitam: o domingo não é dia de trabalho, é dia de missa e convívio com a família. Já o tínhamos percebido na nossa primeira paragem na ilha de Viti Levu, quando passamos um fim-de-semana na aldeia de Viseisei. Ao domingo almoça-se bem, e muito, ao ponto de ao jantar toda a gente ficar satisfeita com um chazinho e bolachas. Em Nakula não era diferente.
Estávamos numa pequena ilha no norte do arquipélago das Yasawas, sem povoações de registo e onde há pouquíssimos habitantes. Quem quisesse assistir a uma cerimónia dominical precisaria de percorrer de barco um par de milhas até à ilha em frente, Nakula. Juntamo-nos a eles, na companhia de um simpático casal de turistas chineses em lua-de-mel, sem qualquer ideia sobre o tipo de culto a que iríamos assistir. Nas Fiji há muçulmanos e hindus, mas a grande maioria das religiões praticadas são ramificações do Cristianismo: há os metodistas, os adventistas, os jeovás, os católicos. A nós tocou-nos – soubemos depois – uma cerimónia do movimento All Nations Christian Fellowship – “Irmandade Cristã de Todas as Nações”.
Mal chegamos ao descampado, onde uma placa de cimento, umas colunas improvisadas e um telhado para proteger do sol faziam a vez de igreja, fomos recebidos por Daniel, um homem que vestia fato e gravata, combinado com o tradicional sulu, o sarong fijiano. Estendeu-nos a mão, perguntou-nos a nacionalidade e disse. “Sejam bem-vindos à nossa igreja. Sintam-se em casa”. E logo se afastou, indo ao encontro do único homem que se distinguia dos demais pelo cabeção a condizer com o sulu branco que envergava. “Este é o padre”, explicamos à Pikitim. A cerimónia estava quase a começar.
Os fiéis estavam ainda espalhados pelo descampado. Por baixo das telhas havia um pequeno púlpito e um altar, onde estavam pão e várias jarras de vinho protegidos por um pano. Num dos cantos, onde se lia a mensagem “God is my source of power”, um organista acompanhado por dois casais entoavam uma canção melodiosa. Havia cada vez mais gente a aproximar-se. As mulheres traziam o corpo todo tapado, com roupas coloridas e uma bolsa na mão com lápis, canetas e cadernos. E a bíblia. Algumas crianças também traziam cadernos da escola, e pareciam estar empenhadas em fazer trabalhos de casa. Os homens – inclusive os rapazes – envergavam camisa branca e sulu preto.
De repente, todos se começaram a sentar nos tapetes de palha que cobriam o chão de cimento. Foi Daniel o primeiro a subir ao púlpito para falar. Pediu desculpa por aquela parte do “serviço” não ser feita em inglês – estávamos por isso avisados de que não iríamos perceber o que estava a ser dito. Nada que incomodasse a Pikitim. Sentou-se como as restantes pessoas no meio do chão e fixou o que todos faziam. “Ele está a falar muito rápido!”, reparou, falando baixinho, e espantando-se com a reacção das pessoas, de olhos fechados, que batiam palmas energicamente, de forma entrecortada. Demorou cerca de dez minutos este ritual ininteligível, até a música recomeçar, e todos se levantarem e começarem a dançar enquanto cantavam “Aleluia”.
A cerimónia parecia ter-se convertido numa aula de ginástica. As frases começavam em fijiano, e terminavam em inglês: “I’m gonna jump! Aleluia”, “God is good, all the time! Aleluia!”. “Isto é mesmo uma festa”, divertia-se a Pikitim, dando pulos de alegria.
Terminado o “exercício”, os fiéis voltaram a sentar-se, e uma rapariga com pouco mais de 20 anos subiu ao altar. Explicou que a mensagem que tinha preparado para aquele dia exortava os crentes a “sentir um amor intenso, acima de todas as coisas”. Enquanto falava, ia remetendo para versículos da bíblia, que a audiência se empenhava a procurar nos livros trazidos de casa. Eram volumes grossos, a denotarem uso intenso pelas anotações e sublinhados. De repente, saiu das colunas algo parecido com o trailer de um filme americano, como se fosse Deus a falar com os seus filhos. “O que é a história que a menina está a contar? Ela está a dizer muitas vezes father – está a falar do pai dela?”, perguntou a Pikitim. No final, a jovem, tomada por qualquer comoção divina, começou a chorar compulsivamente.
Demorou mais de meia hora esta lição bíblica.
Depois de se ter entretido a fazer desenhos e fingir que tirava notas (espantou-se com os caracteres chineses que espreitou no caderno dos vizinhos do lado), a Pikitim acabou por desistir e foi juntar-se a outras crianças a brincar no relvado. A cerimónia religiosa tinha terminado para a Pikitim, que só regressou à “igreja” para perguntar se o padre estava zangado, já que estava a “falar tão alto e a dar tantos gritos”. Os meninos com quem brincava haveriam de regressar à “tenda” para participarem na comunhão. Mesmo os bebés de colo tiravam um naco de pão e bebericavam um pequeno cálice de vinho. A festa continuou com música, cada vez mais alegre e ritmada. Mas para nós era hora de apanhar o barco e voltar. Aquelas famílias iam regressar a suas casas e participar no almoço de domingo, degustando o Lovo que haviam preparado de véspera. Há poucas coisas mais típicas que o Lovo, ou “forno na terra”, um buraco escavado e preenchido com pedras quentes onde uma mistura de carne, legumes e tubérculos é cozinhada durante duas horas, embebida em leite de coco e envolvida em folhas de bananeira. Um verdadeiro petisco.
A Pikitim já tinha visto muitas vezes as pessoas “a rezar” – os muçulmanos a descalçarem-se e ajoelharem-se para aproximar a cabeça no chão, na Tailândia e na Malásia; os hindus a colocarem grãos de arroz na testa e a espalharem incenso e fruta pelos templos e casas, em Singapura e em Bali; os budistas a cantarem enquanto caminhavam pausadamente pelos templos de Borobudur, também na Indonésia. Mas em Nakula era diferente. “Eu não vi pessoas a rezar. Aqui parecia que estavam numa escola. Ou numa festa!”.
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