Uma febre aftosa e três dias sem conseguir comer nem beber tinha sido o magnífico registo em termos de saúde durante todos estes meses de viagem, no longínquo mês de Fevereiro. De então para cá… nada. Até chegarmos a Samoa.
Foi logo no primeiro dia. Estávamos alojados na Taumesina Hideaway, em Apia, e percebemos que o Palolo Deep, um dos melhores lugares da ilha para fazer snorkelling ficava a uma curta caminhada de distância, na aldeia de Matautu’tai.
Passamos uma praia e alguns manguezais, até chegarmos à foz de um pequeno rio. Para chegar a Palolo Deep, havia que atravessá-lo – ou então utilizar a ponte de madeira construída por uma família dentro do seu terreno. Ouvia-se música saída de dentro da casa. Batemos à porta na esperança de nos ser dada permissão para cruzar o rio pela ponte, mas ninguém atendeu.
Sem alternativa e sem querer voltar para trás, arriscámos a travessia. A água não ultrapassava a cintura, mas estava completamente turva que não se vislumbrava o fundo rochoso. Quase a chegar à margem oposta, uma pedra (ou seria um vidro?) cortante como uma faca provocou um corte profundo no pé esquerdo da mãe.
À saída da água, o sangue tingia de vermelho o preto das havaianas. Era muito, mas inconscientemente não foi o suficiente para nos apontar o caminho do hospital. Depois de despejarmos para dentro do corte o que restava do frasco de Tea Tree Oil, um multifacetado antisséptico australiano em que aprendemos a confiar, e de transformarmos temporariamente o sarong que a Pikitim pintou em Bali numa espécie de garrote, seguimos caminho atravessando a aldeia de Matautu’tai.
Seguimos até Palolo Deep, mas a corrente forte que estava a trazer a subida da maré e o amável convite do chefe de Matautu’Tai, com quem nos havíamos entretanto cruzado, para que nos sentássemos à sua mesa acabou por nos desviar do motivo que ali nos levou. O snorkelling ficava adiado para outro dia, enquanto a conversa com Too Mala Tai e os seus filhos ia fluindo ao sabor das cervejas que chegavam às mesas e ao ritmo das gargalhadas das crianças que começaram a brincar com a Pikitim.
Too Mala Tai ordenou a um dos seus filhos que abrisse uma ampola de um antibiótico e a colocasse na ferida (é assim que fazem nas aldeias, explicou-nos mais tarde um médico). Ficamos por ali durante a tarde, enquanto, sem nos apercebermos, a ferida ia piorando internamente, e até aceitamos o convite de voltar no dia seguinte para passar o domingo com a família – algo que muito nos honrou.
Foi, porém, impossível cumprir. O facto de o corte estar sempre a reabrir e a sangrar convenceu-nos da necessidade de visitar o médico. O local onde fomos, referenciados nos guias de viagem como um dos melhores da ilha, parecia uma clínica fantasma, com apenas uma médica a cirandar por entre as instalações – nada de enfermeiros, ajudantes ou sequer um recepcionista. A médica avisou com má cara que já era tarde demais para recorrer aos talvez necessários pontos e, pior ainda, constatou que, menos de 24 horas depois, e apesar dos anti-sépticos usados, a ferida já estava infectada. Não havia outra solução senão começar a tomar antibiótico e, de preferência, passar os dias seguintes sem fazer esforços no pé, tentando não o colocar no chão. A estadia em Apia tornou-se assim, mais caseira do que o previsto, passadas com ajuda de umas muletas emprestadas pela anfitriã Sara.
Quatro dias depois, queríamos mudar de ares e conhecer a costa sul da principal ilha de Samoa. Antes de entrarmos nos coloridos autocarros que nos levariam à pequena aldeia de Lalomano, decidimos ir a outro médico mostrar umas horríveis marcas que, entretanto, apareceram entre os dedos dos pés da Pikitim – que nos pensávamos ser de uma micose – e que nessa noite a levaram a acordar com dores. “Os cremes que andaram a aplicar não fazem nada porque são para tratar vírus e fungos, e o que aqui está é uma bactéria, uma infecção. Precisa de tomar antibióticos já, durante sete dias, e manter o pé limpo. Pode, e deve, metê-lo no mar, mas deve estar o mais possível da areia”, recomendou.
De novo, as questões de saúde ameaçavam os nosso planos. Entrámos no autocarro a cair de podre e com a música nas alturas com uma dúvida essencial: como seria passar três dias a viver em plena praia quando os pés da Pikitim deveriam manter-se afastados da areia?
Chegáramos à costa sul de Upolu, uma zona que foi violentamente atingida por um tsunami em 2009. Só a família Taufua, em cujas fales (nome dado às casas tradicionais do país, muitas delas integralmente abertas) nos alojamos, perdeu 13 elementos e amigos para o mar extemporaneamente violento. Mas a maior parte dos Taufua Beach Fale estão já reconstruídos e ficar lá alojado é uma das formas de ajudar a aliviar as feridas dos que ainda olham para o mar como incompreensível sepultura dos seus entes queridos.
Apesar dos receios, a estadia acabou por ser prazenteira. A praia era lindíssima, a água era quente, o ambiente era agradável e hospitaleiro e, principalmente, havia crianças com quem a Pikitim podia brincar e esquecer a amargura do pé. Fizemos muitos amigos enquanto estivemos com a família Taufua. Nomeadamente Salvador e Ana, um casal de catalães em pré-nupcias que assistiram entusiasmados a uma sessão de desenhos da Pikitim, com a petiza a não deixar ninguém dormir enquanto não arrancou do lápis da desenhadora de bordados (“desenhadora é uma profissão?! Então eu posso ser isso quando crescer?”, perguntou ela) todos os animais que queria aprender a fazer. E, também, a amizade de uma família neozelandesa, cujas três meninas ( Lola, de sete anos, Evey, de cinco, e Njaire, de dois) muito alegraram os dias da Pikitim enquanto enfiava o pé em baldes com água quente e Betadine para desinfectar as feridas.
Foi, por isso, em Lalomano, junto aos amigos da família Taufua que passamos o último domingo em Samoa. Não provamos o umu com o chefe Too Mala Tai mas, uma semana depois, percebemos finalmente do que ele falava. Na farta mesa havia taro (tubérculo muito comum no Pacífico), peixe grelhado, leitão assado, noodles com carne, polvo cozido com leite de coco e, claro, a divina oca, que consiste em peixe cru mergulhado em leite de coco e alguns vegetais, como tomate, cenoura e cebola – e é absolutamente delicioso.
Para além das crianças, a maior alegria da Pikitim foi experimentar dormir numa das muitas “casas sem paredes” que se avistam por toda a ilha. O fale não tinha nada para além de dois colchões no chão e mosquiteiros a tapá-los, mas a Pikitim disse que foi onde mais gostou de dormir, a ponto de não se querer sair de lá. “Mas porque é que nós temos de ir embora desta casa? Aqui estamos tão bem!”.
Na verdade, queríamos conhecer Savai’í, a maior ilha de Samoa, mas bem menos desenvolvida que Opulo. Em Savai’í, não há algo que se possa verdadeiramente chamar de hospital e os médicos só esporadicamente dão consultas na ilha. Pesados os prós e os contras, acabámos por prolongar a estadia em Lalomano, rodeados de anti-sépticos e antibióticos. Conhecer o resto de Samoa fica para uma próxima viagem, de preferência sem infecções.
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