Estávamos habituados a que recorresse ao pai ou à mãe quando queria dizer alguma coisa a alguém que não falasse português. “Diz ao senhor que eu não gosto de comida picante”; “olha, podias pedir à mãe daquele menino que o deixe vir sentar-se ao meu lado?”; “conta à Valérie que o meu primeiro dente caiu quando estava a comer melancia e que eu nem dei por nada!”. Os exemplos eram diários. Foi, por isso, uma surpresa para nós (e uma alegria também) quando nos apercebemos que, uns meses de estrada depois, a Pikitim começava a experimentar outras línguas e a adequar o parco vocabulário que foi aprendendo para cumprir as suas necessidades comunicativas.
Estávamos nas Fiji, num resort para “mochileiros”, daqueles onde não se paga couro e cabelo mas que tem ainda mordomias e comodidades e cujas receitas vão diretamente para as comunidades locais e não para uma multinacional hoteleira. Chama-se Beach House, fica na magnífica Costa do Coral, na principal ilha das Fiji, e estávamos lá tão bem que decidimos encurtar a nossa estadia nas Yasawas para voltar àquele pequeno paraíso.
Numa dessas nossas estadias na Beach House a Pikitim começou a assumir a sua “independência”, e a demonstrar que conseguia estar “em casa” mesmo que estivesse a mais de 18 mil quilómetros do seu quarto. O nosso bungalow (com casa de banho ao ar livre, para deleite da Pikitim) ficava perto do restaurante, que ficava perto da piscina, que, por sua vez, ficava perto do bar da praia onde todos os dias, às três e meia da tarde, nos deliciavam com um chá e scones acabadinhos de sair do forno.
Para mantermos a nossa viagem dentro do orçamento planeado (e também para satisfazer o palato e o estômago da Pikitim com as belas sopinhas portuguesas) usávamos quase todos os dias umas instalações nas traseiras do resort a que chamavam “backpacker’s kitchen”. Ficava algo escondida, do lado oposto da praia (o centro das atenções) e da nossa “zona vital”, acessível por uns trilhos de terra por entre vegetação. Ao lado dessa cozinha havia, também, uma sala de televisão, com muitos sofás envelhecidos e uma ligação por satélite. Era aqui que a Pikitim gostava de ficar a ver alguns desenhos animados enquanto esperava que preparássemos a refeição.
Uma das vezes em que nos aproximamos da cozinha, verificámos que a sala de televisão estava ocupada com uma outra viajante, que via uma série ou um filme. A Pikitim nada disse, e veio connosco para a cozinha.
Reparamos que tinha saído algum tempo depois, mas imaginamos que andaria ali por perto, a brincar atrás do gato, ou de um dos três cães que conviviam amigavelmente na Beach House com todos os seus hóspedes. Mas não. Acabamos por encontrar a Pikitim, esparramada num dos sofás, a ver um programa do canal Cartoon Network. “A senhora que aqui estava a ver filmes em inglês sorriu para mim, e eu aproveitei para lhe pedir para mudar de canal”, contou ela. “Mas o que lhe disseste”, perguntei eu desconfiada. “Fácil. Olhei para a televisão e pedi: ‘Please, cartoon, more good for me’. E ela foi muito simpática. Porque me deu um sorriso e mudou de canal”, contou a Pikitim.
Houve mais episódios na Beach House que nos ajudaram a consolidar a ideia de que esta viagem estava a trazer à Pikitim a desenvoltura que desejávamos, e uma postura muito distante daquela menina algo receosa que saiu do aeroporto Francisco Sá Carneiro. Por exemplo, aquele dia em que nos “perdeu” nos tais trilhos de terra batida. Enquanto o pai estava no seu “escritório” montado junto à praia e eu tinha ido ao bungalow buscar qualquer coisa, a Pikitim desapareceu das nossas vistas, e foi procurar-nos à cozinha. Quando não nos encontrou, deve ter feito uma cara perdida e um sorriso inquiridor. A verdade é que a encontramos, de mão dada com uma local, quando nos procurava pelos vários recantos. “Eu disse-lhe ‘mother no there‘ e apontei para a cozinha. Depois ‘father no there‘ e apontei para a praia. Esta senhora percebeu que eu andava à tua procura e veio ajudar a procurar-te”, contou, sem mostrar qualquer sinal de desconforto.
Desenhamos o projeto de viajar durante um ano com a nossa filha com o objetivo de lhe mostrar um pouco do mundo, plantando nela as sementes para que crescesse uma cidadã global, sempre curiosa, cultivando a perspicácia e militando a tolerância. Porque, acreditamos, essa é a melhor forma de preparar os nossos filhos para este mundo cada vez mais global mas ainda assim tão diverso. E as diferentes línguas são apenas um dos aspetos em que se pode sentir, e manter, essa diversidade.
Quando chegamos às Fiji, com quase seis meses de viagem no corpo, a Pikitim já tinha experimentado o “bom dia”, o “por favor” e o “obrigada” em várias línguas. Tinha apreciado particularmente o ritmo cantado do tailandês, enquanto se divertia a prolongar a sílaba final do “Sawa dii-ka”, e percebeu que na Indonésia e nas Filipinas algumas palavras são parecidas – como o obrigado em filipino, “Salamat Ho”, ou bom dia em indonésio, “Selamat pagi”. E divertia-se a perguntar como estavam todos quando queria dizer bom dia aos filipinos: “Kumusta”.
Aprender a falar e a escrever línguas era uma das vontades que manifestava sempre – ela, que ainda não sabia escrever em português, e apenas conhecia alguns carateres. Mas queria sempre fazer um desenho com uma paisagem de um país, e escrever lá um “bom dia” na língua local para enviar aos amigos da escola. Daí até começar a aventurar-se na língua que mais nos ouvia falar, a seguir ao português, foi um passo curto. E essa é apenas uma entre as muitas vantagens de viajar. Destreza, desenvoltura, capacidade comunicativa. É “more good” para todos.
Rodrigo Viterbo diz
Que delícia! Obrigado pela partilha…